A transfiguração da fome

Segundo Domingo da Quaresma. O tempo litúrgico se faz presente numa semana que dá início a uma data extremamente significativa para o universo feminino. Na quarta feira (8 de março) é comemorado o Dia Internacional da Mulher. Data especial para celebrar muitas conquistas delas ao longo dos últimos séculos, mas também serve para alertar sobre as mazelas e os retrocessos sobre os graves problemas de gênero que ainda persistem em todo o mundo, sobretudo aqui no Brasil. Ser mulher é mais do que fazer parte de um gênero, é “matar um leão por dia” para fazer valer os direitos femininos. “Direitos não se pede de joelhos, exige-se de pé”

O domingo é tempo de pensar conforme a Quaresma nos orienta: buscar a conversão. Converter para viver. Converter para estar em sintonia com Jesus, dando prosseguimento ao seu Projeto do Reino. Uma mudança necessária para nos adequarmos ao Evangelho. Conversão que se faz num processo que deve tomar conta da nossa vida até o dia de nossa páscoa na Páscoa d’Ele. Conversão que é uma busca, uma viagem ao nosso interior, mas que tem a sua transcendência nas ações que somos desafiados a executar. Santo Agostinho nos ajuda a desenvolver este processo através dos três verbos indicados por ele: “Conhece-te, aceita-te, supera-te”.

Se o domingo passado foi o das “tentações”, este é o “Domingo da Transfiguração do Senhor”, como a liturgia de hoje nos propõe refletir. Seis dias depois de falar aos seus discípulos acerca de seu confronto com as autoridades políticas, religiosas em Jerusalém, onde a sua morte estava sendo arquitetada, Jesus toma consigo os três discípulos mais próximos de si (Pedro Tiago e João) e os leva à montanha para consigo rezar. Lá Ele se transfigura diante dos olhos assustados do discipulado. Um mistério teofânico pleno de significado e importância para a vida de todos os seguidores e seguidoras do Mestre Galileu: “Numa nuvem resplendente fez-se ouvir a voz do Pai: Eis meu Filho muito amado, escutai-o, todos vós”. (Lc 9,35)

Escutar Jesus é não deixar-nos sucumbir às tentações. Apesar de serem os discípulos prediletos d’Ele, a história de vida deles mostra que não estavam antenados com o seu Mestre. Pedro quis fazer Jesus desistir de sua caminhada rumo à cruz, não querendo que este fosse à Jerusalém. Os outros dois discípulos estavam disputando entre si qual deles seria o maior no Reino, dando claras mostras de que não haviam entendido nada acerca do ensinamento principal de Jesus: “quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se servo de vocês”. (Mt 20,27) Ou seja, servir e não ser servido. Esta é nova sociedade que Jesus projeta. A autoridade não é exercício de poder, mas dedicação ao serviço que se exprime na entrega de si mesmo para o bem comum de todos.

Tentação lá, tentação cá. No contexto da transfiguração, Pedro teve a tentação manifesta: “Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias” (Mt 17,4). Puro comodismo. Todos nós temos também as nossas tentações cotidianas. Uns mais, outros menos. Talvez hoje as nossas maiores tentações passem pelo comodismo, pelo consumismo e pela indiferença. Como todos os anos, nós cristãos católicos, temos a oportunidade de refletir sobre uma temática especifica de nossa sociedade, não são todos os que assumem este compromisso reflexivo proposto pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. A fome, apesar de ser uma realidade que castiga o estomago de centenas de famílias brasileiras, esta preocupação não faz parte de uma classe de pessoas que se dizem cristãs e professam a fé católica. Pelo contrario, tecem duras, desonestas e covardes críticas aos bispos brasileiros por enfocarem tal temática na ordem do dia de nossa prática de fé.

A fome destrói sonhos e projetos de vida. A fome encurta a vida. A fome mata. A fome é um problema estrutural. A fome não acontece por acaso. Como diz o cientista social pernambucano Josué de Castro (1908-1973): “A fome é a expressão biológica de males sociológicos”. A não adesão à campanha: “Fraternidade e Fome”, é a não adesão ao sonho de Deus de que todos e todas nascemos para viver, comer, crescer e sonhar todos os nossos sonhos possíveis na busca por uma vida de integralidade. “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16) Por incrível que pareça, também não se ouve uma vírgula sequer acerca desta temática nas centenas de homilias das celebrações, sobretudo naquelas mídias/emissoras que trabalham na “evangelização”. Como Pedro, se perdem na tentação das “tendas”, preferindo cultuar um deus frio e distante entre as paredes dos templos, sem nenhum compromisso com a transformação social. Quiçá os ajude a leitura do Livro de Josué de Castro (Geografia da Fome) onde na introdução ele assim o diz: “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado”. Vale a pena a leitura atenta desta obra prima, ou seria pedir demais para quem tem uma fé descomprometida com a realidade? É o seu caso?

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.