As sandálias de Pedro

Marca registrada nos pés franzinos de Pedro as surradas sandálias de dedos era presença certa. Por onde andava, lá estava ele com as suas inseparáveis sandálias. Praticamente quase todos os agentes de pastoral da Prelazia de São Félix a usava também. Tanto que as famosas sandálias receberam o singelo nome de “prelazias”. Assim era fácil distinguir um agente de pastoral das demais pessoas, por causa da sua prelazia sob os pés. Era assim nos 150 mil km2, espaço territorial que constituía a Prelazia de São Félix do Araguaia, na Amazônia Legal brasileira. Ficamos estigmatizados por causa delas.

Convocado para ir à Roma para sua visita “ad limina”, Pedro teve que tomar emprestado algumas peças de roupa. A batina, por exemplo, foi emprestada por um irmão padre dos Claretianos. O comandante Fidel Castro, amigos de longa data, deu-lhe de presente um par de sapatos. Ao ser perguntado por um dos cardeais em Roma, não titubeou e disse com todas as letras que aquele sapato, fora um presente do amigo Fidel. Fico a imaginar a cara de reprovação do então cardeal.

Pedro era sinônimo da simplicidade em pessoa. Tudo nele era muito simples. Austero. Desde as sandálias (prelazias), passando pelas roupas do corpo, num estilo de vida de despojamento total. E não se tratava de estética evangélica, mas tudo era decorrente da sua opção radical de vida pelas causas que lutava. Não aceitava nenhum tipo de regalia para si. Seu foco principal era viver na simplicidade, como vivia a grande maioria das pessoas pobres da região do Araguaia. Mesmo doente, foi difícil convencê-lo a aceitar que um ventilador o refrescasse nos dias de maior calor.

Por causa desta sua radicalidade na defesa dos pequenos, ganhou a antipatia dos poderosos latifundiários, que atribuíam ao bispo, o atraso da região do baixo Araguaia. Ele era tido como alguém que atravancava o progresso da região, por causa do seu discurso inequívoco na defesa dos interesses dos pequenos: posseiros, peões, indígenas, assentados, mulheres. Seus opositores eram cruéis nos ataques sistemáticos que faziam ao bispo Pedro. Entretanto, Pedro reclinava com sua cabeça ao travesseiro e dormia tranquilamente, pois entendia que este era o preço a ser pago por causa da sua opção por um dos lados: o lado de cá.

Pedro vivia antenado às causas que defendia. Os pobres eram os destinatários primeiros de seu processo de evangelização. Visitava-os frequentemente em suas casas, suas posses, o lugar de suas labutas diárias. Dia desses, encontrei com uma senhora idosa, evangélica, que me dizia feliz das muitas vezes que Pedro fora visitá-la em sua casa, mesmo não sendo ela da mesma igreja dele. Pedro trazia em si o cheiro do povo. Ele se preocupava tanto com o povo que, sempre teve na frente de sua casa, uma torneira com água cristalina vinda diretamente da mina, nos fundos da sua casa, onde muitas pessoas, ainda hoje, recolhem água dia e noite.

Costumo dizer que aqui na nossa região só existem duas estações no ano: inverno e verão. Inverno é o período das chuvas, que geralmente chegam por volta de outubro e vão até abril do ano seguinte. Quando as chuvas acabam, ai vem o verão. O calor predomina por longo período. Por causa dele, habituei-me tanto com as tais sandálias que também as adotei. Nunca mais consegui usar sapatos. Lembro-me de uma das vezes que fui visitar minha irmã, num dos conventos de sua congregação, e a freira quando me viu, estranhou os meus pés de sandálias. Passado algum tempo, lá vem ela com um par de sapatos novos. Entreguei-o ao primeiro morador de rua que avistei ao sair dali.

O padre Josimo Tavares, que foi assassinado a mando do latifúndio, no dia 10 de maio de 1986, na escadaria da Cúria Diocesana de Imperatriz, Maranhão, também ele, usava as suas sandálias aos pés. Era comumente chamado, o padre negro das sandálias surradas. Um mártire na luta pela terra. Tinha na Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada pelo nosso bispo Pedro, sua principal atuação, na defesa da Reforma Agrária. Como Jesus, morreu porque afrontou o império da morte.

Nós temos um sonho. Um sonho que sonhamos acordados, perseguindo-o há anos. Que a nossa Igreja calce de vez as sandálias dos pobres, não como uma opção preferencial, mas que seja o jeito encarnado dessa igreja ser. Igreja sem muitos trajes, adornos, rendas, mas uma igreja pobre, samaritana, que saiba cuidar dos pobres com o carinho devido. Que abrace as causas dos pobres e, com eles, construamos uma nova sociedade. Não uma sociedade da riqueza, da acumulação, mas da partilha de tudo com todos. Onde a justiça seja a porta de entrada e a solidariedade a serventia da casa. O bispo dos pobres não está mais fisicamente presente entre nós, mas o seu legado é vigoroso e desafiante, de uma Igreja peregrina que caminha teimosamente rumo à utopia do REINO.