Ouvimos repetidas vezes que a Quaresma é tempo de conversão. De jejum, esmola e oração. É um retiro espiritual em que são fortes as mortificações e penitências e, inclusive, nos aproximamos de maneira especial do sacramento da confissão.
A conversão é pessoal, é um movimento do coração, ou seja, da pessoa inteira, para uma mudança de projeto de vida para que esteja mais alinhado, conectado com o projeto de vida de Deus. Diante disso, alguns dirão: CF na quaresma? Não são coisas diferentes? Como estes dois tempos se interrelacionam?
Em primeiro lugar precisamos nos lembrar de que CONVERSÃO, para o cristão, tem como referência o Evangelho, ou seja, a vida e a pregação de Jesus que nos revela o Pai, no Espírito por seus gestos e palavras. Toda mudança de vida – conversão, em toda espiritualidade cristã tem em vista a pessoa de Jesus como modelo. “Aprendei de mim” – “sede discípulos meus” Ele nos diz, “que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
Não apenas imitamos o gesto de Jesus de ir ao deserto rezar e jejuar, mas o imitamos, aprendemos dele, o jeito de viver, sua opção por fazer a vontade do Pai incondicionalmente. Foi esta opção que O levou ao deserto assim como O levou a tomar dezenas de outras atitudes. Somos chamados a imitar a Jesus nas suas opções fundamentais, ou seja, viver movido por Seu
Espírito. Afinal, o Evangelista Mateus diz que Jesus “foi conduzido ao deserto pelo Espírito” (Mt 4,1). Isso significa dizer que, vivermos a quaresma em comunhão com Jesus 40 dias no deserto, como nos motiva a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas, nos une não apenas ao gesto exterior, mas nos coloca em sintonia com as motivações de Jesus, com sua opção pela Vontade de Deus. Esta opção fará Jesus vencer as tentações do deserto que remetem as tantas “tentações” que temos, de nos colocarmos fora do projeto de Deus para nós.
Toda a vida cristã, o seguimento a que Cristo nos convida, consiste neste processo de aprender dEle a realizar a vontade do Pai para nós, para toda a humanidade. Como lembra Bento XVI (Audiência Geral, 22/02/2012), Jesus esteve diante da decisão de escolher entre “um messianismo de poder, de sucesso, ou um messianismo de amor, de doação de si”. A quaresma é tempo de retomar, avaliar e reavivar nossa opção por estar no seguimento do Mestre, escolhendo com ele a vontade de Deus sobre nós.
Diante disso, podemos nos perguntar qual é o projeto de Deus? O que Ele espera de nós? Como podemos imitar os gestos de Jesus no concreto da nossa vida, nesta condição histórica em que nos encontramos? Esse é o desafio da vida cristã. Papa Francisco sublinha a importância do discernimento na busca da santidade. Na Gaudete et exsultate, 167, ele insiste que é uma necessidade imperiosa, urgente, porque a santidade consiste em reconhecer para onde o Espírito nos guia, assim com a Jesus.
Quando olhamos para vida e a missão de Jesus encontramos critérios de discernimento, pois o ponto de chegada e de partida é Ele. Seu jeito de ser, pensar, agir, seu sentir são modelos para nós, porque Ele é o primogênito. Ele nos ensina a ser plenamente humanos, assim como foi sonhado pelo Criador ao insuflar Seu sopro de vida em nós.
Então, olhemos para Jesus. Ele vai ao deserto, sente a condição humana de fome, cansaço, sede… experimenta as tentações que nos acometem e volta para junto das pessoas. Ao voltar, convida, cura, ensina, convive, sente compaixão, se aproxima das pessoas estabelecendo encontros profundos de interioridades. Esses encontros geram mudanças radicais: o cego
volta a ver, o surdo a ouvir, o morto volta a viver… Outras vezes busca lugares desertos para descansar e estar com o Pai, nos dizem os evangelistas. Deserto e multidões se alternam, ora se entrelaçam e sempre resultam em “mais vida”, “mais esperança”, compaixão.
Movido pela compaixão Jesus cura para reintegrar, ressuscita para consolar, proteger, multiplica o pão e dá tudo de si para que ninguém fique condenado ao isolamento, à fome, à sede, mas para que todos sejam integrados ao banquete da vida que está preparado para todos.
A quaresma para nós não é deserto do isolamento, mas do silêncio donde brota a experiência de encontro com o Pai, que nos faz compassivos, à semelhança do Mestre. Logo, caminhando com Ele, não podemos passar ao largo daqueles a quem Ele se acerca. A Campanha da Fraternidade nos ajuda a fazer este exercício. Quaresma é exercício de santidade. Santidade é assumir o projeto de Deus tal como nos mostra Jesus: até as últimas consequências, mas a partir das coisas pequenas, como nos ensina a vida de tantos santos e santas que dedicaram suas vidas cuidando de doentes, órfãos, gerando transformação social, oferecendo educação, inclusive.
Se vamos com Jesus ao deserto, precisamos acompanhá-Lo em sua opção preferencial por aqueles que sofrem, condenados a desertos de pobreza, desemprego, injustiças, desesperança…
As reflexões propostas a cada ano na CF nos ajudam a estar com Jesus nos desertos da vida onde Ele hoje está, porque é isso que nos mostra o Evangelho, Jesus se coloca ao lado daqueles a quem ninguém quer estar: pobres, pecadores, cobradores de impostos.
Se nos colocamos com Jesus no deserto, o deserto nos abre a mente e o coração para a fraternidade universal, assim como Jesus, por causa do projeto do Pai que é salvar, que é dar “vida em abundância” (Jo 10,10).
Quaresma é tempo propício para olharmos para dentro de nós e vermos se o deserto nos torna capazes de ir à Galileia, à Cafarnaum, à Jerusalém, Betânia, Caná, Naim onde o povo clama por justiça, pão, ensino.
A CF nos ajuda a identificar estes lugares “sagrados” no hoje e nos coloca em movimento de saída e em direção às tantas realidades de nossa vida e sociedade que contradizem o projeto do Pai pelo qual Jesus deu a vida.
Jejum, esmola e oração é o tripé que nos sustenta na boa e santa vivência da quaresma. Que tenhamos o discernimento necessário para não deixar em desequilíbrio este tripé. Que nos deixemos ajudar por nossa mãe Igreja, que através da CF, nos mostra onde e como concretizar o sentir e agir de Jesus no hoje da história.
Ir. Valéria Andrade Leal
Fonte: https://campanhas.cnbb.org.br/