Com sangue nas mãos

O dia amanheceu mais ameno. Uma quarta-feira (23) diferente dos demais dias. Sem aquele calorão e a fumaça para respirar. A pouca chuva que caiu, no dia anterior, já foi suficiente para mudar um pouco o panorama. Não foi na quantidade que desejávamos, mas Deus sabe o que faz. Nós não! Somos seres ingratos e não cuidamos adequadamente da nossa principal fonte de vida, mãe natureza, nossa Casa Comum. Cuspimos no prato que comemos, emporcalhamos tudo ao nosso redor e, contraditoriamente, usamos o fogo para “limpar.”

A tarde de ontem foi atípica. Não por causa da chuva que veio, mas porque passei grande parte do meu tempo, administrando revolta. Uma revolta generalizada dos indígenas daqui da região, que foram acusados internacionalmente, de colocarem fogo na floresta, no cerrado. E a revolta maior, claro, advém do fato de que o fogo, não sai da aldeia para fora, mas chega até ela de fora pra dentro. Ou seja, quem coloca fogo o faz a partir da área desmatada, com o objetivo de usufruir do espaço para a pastagem do gado ou para a semeadura da soja.

Ainda bem que eles estão antenados e viram tudo. Nestas horas, as redes de digitais funcionaram a todo vapor e os colocaram em sintonia com tudo o que está ocorrendo ao seu redor. Um abatimento geral tomou conta de todos porque, nestes últimos dias, algumas das aldeias nem dormindo está, com medo do fogo, cada dia mais perto. Enquanto uma parte não dorme, a outra (os homens) passam a noite tentando controlar o fogo. Vários, inclusive, estão intoxicados pelo excesso de fumaça na linha de frente.

“Este homem não nos quer bem. Eu vi ódio nos olhos dele e rancor no coração. Eu queria que ele viesse aqui na aldeia para me dizer, olhando nos meus olhos”, me disse um cacique Xavante revoltado. “Os fazendeiros estão acabando com tudo e ele ainda fala que somos nós que estamos pondo fogo. Nós não pomos fogo naquilo que nos trás vida”, completou um dos professores indígenas.

Desde que fez a retomada de seu território, em 2012, o Povo Xavante vem fazendo o replantio de cerca de 100 mil árvores nativas. Tudo isso, numa tentativa de recuperar o Território de Marãiwatsédé, que fora devastado pelos pecuaristas que invadiram estas terras. Terras estas que foram entregues a eles pelos militares, durante a ditadura militar no Brasil. Este território havia se transformado em terra arrasada. Algumas destas árvores plantadas, já estavam com 8 anos de idade. Jacarandás, mognos, cerejeiras, jatobás… Tudo graças ao trabalho dos indígenas e as múltiplas parcerias. Tudo devorado pelo fogo rapidamente. Seria muita idiotice se eles tivessem colocado este fogo, destruindo assim todo o seu trabalho.

Estou precisando recobrar as minhas forças. Forças estas que nem sei mais de onde tenho tirado. Minha alma abatida e coração entristecido, vão no compasso da paciência. Coisa que tem me faltado nos últimos tempos. Dizem que ela é uma das virtudes. Quando olho para o texto da liturgia do dia, deparo com Jesus fazendo o solene alerta: “Não leveis nada para o caminho: nem cajado nem sacola nem pão nem dinheiro nem mesmo duas túnicas.” (Lc 9, 3). Despojamento total. Esse Jesus é terrível! Nos deixa sem reação. E agora? O que fazer? Entregar-se confiante na providência divina? Certamente que sim, uma vez que ELE está no comando de tudo. Mas não demores muito, Senhor! Talvez não tenhamos mais força para lutar contra tanta tragédia e destruição ao nosso redor. Enquanto isso, eles riem de nós e das nossas fragilidades.

O que me vale é que o profeta Isaías veio em meu socorro. Sempre o busco/procuro nestes momentos de maior angustia. Angustia por ver tanta maldade e as pessoas de bem, “cristãos” como eu, endossando tudo isso e fazendo referência ao nome de Deus. Até inventaram uma palavra nova: “Cristofobia”. Mas o meu profeta favorito não deixa barato. Olha o que ele disse: “Quando vocês estenderem as mãos em oração, esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue! Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva.” (Isaías 1, 15-17) Recobrei as minhas forças e estou pronto para mais um dia de luta. Que as minhas mãos não se fiquem sujas com o sangue dos inocentes, frente ao império da mentira.