Complexo de vira lata

Sábado (12), dia de festa! Festa da Padroeira da América Latina, Senhora de Guadalupe ou Virgem de Guadalupe. Esta é a denominação de uma aparição mariana da Igreja Católica de origem mexicana, cuja imagem tem como seu principal local de culto celebrativo a Basílica de Guadalupe, localizada no sopé do monte Tepeyac, ao norte da Cidade do México.

Sua histórica aparição aconteceu pela primeira vez no ano de 1531, ao indígena da etnia Asteca, Juan Diego, na colina de Tepeyac, perto da capital. Esse indígena foi canonizado pelo Papa João Paulo II, no ano de 2002. Na língua Asteca, o nome Guadalupe quer dizer “Perfeitíssima”. A Virgem que esmaga a deusa de pedra.

Comecei o meu sábado chuvoso, rezando com a Virgem de Guadalupe, a padroeira de toda a América Latina. Sobre ela, Pedro assim também rezava: “Senhora de Guadalupe, padroeira destas Américas: por todos os indiozinhos que vivem morrendo, roga. E roga gritando, mãe! O sangue que se subleva é o sangue de teu Filho, derramado nesta terra a varadas de injustiça e na cruz da miséria”. (ROMANCE GUADALUPANO – Pedro Casaldáliga)

Não poderia começar melhor o meu dia, lembrando da mãe de todos nós, sobretudo dos povos originários. A Mãe que caminha com o povo ancestral de toda a América. América sofrida e maltratada pela ação diabólica do colonizador que tanto mal fez aos que aqui encontrou. Deixando um rastro de destruição e morte não somente de indígenas, mas também dos povos afro-descendentes, na sua desenfreada avidez de saques e massacre da cultura autóctone.

Somo frutos desta ação predatória dos europeus que aqui aportaram. Triste saber que a Igreja Católica fora conivente com o massacre de indígenas e negros, pois não somente estava presente na embarcação de algozes colonizadores, mas usou da cruz, para domesticar almas e consciências dos povos. Como nos dizia o Frei Franciscano Leonardo Boff: “A espada que durante o dia feria os corpos de indígenas e negros, a noite se transformava na cruz que domesticava as almas e consciências destes povos”.

A Igreja foi conivente com este massacre. Ela também possuía os seus escravos. Como na senzala, ela aplicava os castigos aos corpos de negros e indígenas infratores, com o desencargo de consciência de aplicar apenas a metade da pena, que era aplicada na Corte. Durante muito tempo, as congregações religiosas não permitiam que os vocacionados negros, tivessem acesso ao sacerdócio como clérigos. Somente os aceitavam como “Irmãos leigos”, que prestavam serviços subalternos nas sacristias das igrejas ou nos conventos religiosos.

Somos um país que cultiva em si mesmo o famoso “complexo de vira lata”. Esta expressão quer designar um comportamento autodepreciativo, quando as pessoas vivem rebaixando a si mesmas e ao mesmo tempo enaltecendo as outras de fora. Em outras palavras, as pessoas acabam depreciando a sua própria cultura, usos, costumes e o seu modo de ser, a sua inteligência, sua economia e até mesmo os seus princípios morais, enquanto supervaloriza os valores de outrem. Com esta ideia em mente, os brasileiros passaram a se ver como seres inferiores aos demais.

Na verdade esta ideia surge entre nós no século XX, quando Joseph Arthur de Gobineau, desembarcou no Brasil em 1845. Segundo a ideia deste conde francês, os cariocas eram tidos como “verdadeiros macacos”. Sem falar que o nosso Monteiro Lobato, juntamente com alguns intelectuais da época, defendiam ardorosamente a supremacia da raça branca, afirmando que a nossa miscigenação era a causa de todos os nossos males. Numa demonstração clara de como o racismo estava presente desde os primórdios nas ideias dos nossos, num pessimismo muito grande em relação ao povo brasileiro. Monteiro Lobato chegou a afirmar que “o brasileiro era um tipo imprestável que não conseguiria crescer sem o apoio de uma raça pura”. Branca, claro!

Conhecer a história é conhecer quem somos nós. Um povo sofrido, vítima da supremacia de uma elite branca, que comandou e ainda comanda os destinos desta grande nação. A nossa cultura é extremamente rica, justamente pelo fato de conter em si esta grande diversidade, fruto desta miscigenação. Apesar de uma história marcada pelo sofrimento e dor, somos um povo de uma riqueza inestimável que precisa acreditar mais em si e valorizar o seu povo que sobrevive na resistência. Como Pedro, rezemos a nossa superação como povo que quer se valorizar: “Ó Deus sempre negro e até branco às vezes, Deus de todas as cores e de nenhuma cor, proximidade fraterna em Jesus de Nazaré e sempre mistério insondável: Concede ao Povo negro, desta nossa Afroamérica e da África Mãe e de todo o mundo, a perseverante lucidez de seus ancestrais, matriarcas e patriarcas, e a teimosa resistência de seus lutadores e mártires, para conquistarem plenamente seus direitos como pessoas e como Povo; e concede-nos a todos – de todas as cores – uma infinita negra solidariedade. Axé, Amém, Aleluia! (Oração da causa negra – Pedro Casaldáliga) Que a Senhora Indígena de Guadalupe nos proteja!