Coração ferido

 

Quarta feira da oitava da páscoa do crucificado que, para alegria nossa é o Ressuscitado. Ele vive! O Cristo é o Senhor da história! Somos testemunhas de que Deus o fez vencedor da morte, sendo vida plena no meio de nós. Para desespero daqueles que o assassinaram, a sua proposta messiânica continua viva, através dos mártires da caminhada, testemunhando o amor de Deus pelos seus, dando uma nova guinada na história da humanidade. Deus é fiel sempre! Em Jesus aprendemos que a morte não é o fim, mas o começo de tudo.

Morte que se apresenta no horizonte de nossas vidas. Precisamos aprender a conviver com ela de forma mais tranquila, como fez São Francisco de Assis, que a chamava carinhosamente de “irmã morte”. Morte que é o destino de todos os viventes, que ao nascer, sabe que um dia terá um encontro com ela. Evidentemente que não estou falando de mortes prematuras, antecipadas, como parte de uma crônica da morte anunciada de pessoas que estão perdendo as suas vidas para uma pandemia, por puro descaso e incompetência das autoridades que nos (des)governam..

Uma quarta feira de luto. O dia amanheceu mais triste, não somente por causa das 4.200 vidas que perdemos, em um só dia, na batalha contra uma doença traiçoeira, mas por causa também da morte do grande teólogo suíço Hans Küng (1928-2021), que faleceu ontem na Alemanha aos 93 anos de idade. A teologia está órfã pela perda de um dos maiores teólogos do século XX. Uma mente rara no campo da teologia. Por causa de seus valiosos estudos e a sua lucidez teológica, foi cruelmente perseguido, principalmente dentro da própria Igreja Católica, inclusive pelo Cardeal Joseph Ratzinger, mas também pelo Papa João Paulo II, numa discordância acirrada das teses defendidas pelo eminente teólogo.

Conheci a vasta produção teológica deste teólogo quando ainda transitava pelo curso de filosofia. Ele influenciou por demais os jovens da minha geração, com as suas ideias no campo da teologia. A sua “rebeldia teológica” influenciou a nossa formação nos seminários. Quando cheguei à teologia, tive mais acesso aos seus escritos e melhor compreensão das ideias defendidas por este grande teólogo. Lembrando que a sua participação no Concilio Vaticano II (1962-1955) foi determinante, considerado umas das espinhas dorsais das ideias que saíram deste importante documento para a história da Igreja a partir de então. Também para os tempos de proliferação do ódio, uma das suas frases nos diz muito: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais”.

Embora incompreendido pelo pensamento mais retrógrado de fundamentalistas fanáticos, o pensamento teológico de Hans Küng, ainda vai nos ajudar muito na compreensão das ideias acerca de Deus, sobretudo no campo da “pericorese”. Palavra que faz parte da teologia cristã, utilizada para nos ajudar a decifrar este grande Mistério do Amor Familiar de Deus para com os seus, constituindo a Santíssima Trindade: Pai Filho e Espírito Santo. Uma sincronia e sinergia perfeita entre as Três Pessoas, que nos convida à admiração e adoração do Deus que nos criou e nos fez co-participes de seu Projeto Escatológico.

Vivemos dias difíceis. Não estamos somente rodeados pelo clima fúnebre, mas também impera entre nós o ciclo do ódio. Os artífices da crueldade insistem em arquitetar as suas maldades, onde prevalece a mentira e o negacionismo dos conhecimentos racionais. Este clima nos deixa triste. Nosso coração está ferido pela dor. Choramos a morte das pessoas, próximas, ou distantes. Entretanto, esta situação não comove outras pessoas, uma vez que elas são desprovidas de humanidade. A morte não os impacta porque os seus corações de há muito já desfaleceram. Precisam passar pela experiência do profeta Ezequiel: “Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e, em troca, darei um coração de carne”. (Ez 36,26)

Coração ferido, machucado pela dor. Nosso coração pulsa no peito no mesmo compasso dos discípulos de Jesus a caminho de Emaús. Cabisbaixos, taciturnos, decepcionados pela perda do ente querido, seu Mestre, recentemente assassinado pela força desproporcional do Império Romano. Somente Jesus poderia devolver-lhes o animo e a vontade de lutar. E foi o que realmente aconteceu. Ele se coloca no meio deles e os faz ver que a vida ainda é a mensageira de Deus, pois Ele está vivo, presente no meio deles. Neste instante, o doloroso luto se transforma em luta. Vida que segue! Experiência que trazemos para os nossos dias atuais. O luto dói, mas a luta nos chama. Chega! Queremos o nosso Brasil de volta! O Nosso Brasil não merece este outro Brasil!