De portas fechadas

 

Segundo domingo da páscoa d’Ele. O clima ainda é de tensão e medo. Como os seguidores de Jesus estavam amedrontados diante daquele contexto fúnebre, também nós estamos aqui vivendo dias difíceis, frente à morte a nos rondar por todos os lados. Ao contrario das corajosas mulheres que não arredaram o pé, aqueles homens estavam de portas fechadas, por medo dos judeus. Imaginavam que, se fizeram com Jesus o que fizeram o que não farão com eles, seus pobres seguidores. É o medo inibindo literalmente a ação.

Meu domingo começou bem cedo em mais uma visita que fiz à sepultura do guerreiro. Fui buscar forças com ele, nosso profeta do Araguaia. Reabastecer-me para seguir confiando e caminhando. Alguém, alguma mulher certamente, se encarregou de trazer flores que foram depositadas ali na sua sepultura. O mais interessante é que elas sequer murcharam, visto que estão ali já há alguns dias. E a pessoa que depositou ali aquelas flores sabia, de antemão, que Pedro gostava de flores. Não as de plástico. Se alguém as trouxesse ao altar, ele dava um jeito de sumir com elas.

Pedro era completamente avesso ao medo. Qualquer que fosse ele. Nos momentos mais difíceis de sua vida, quando as perseguições não aconteciam via redes digitais, mas no cotidiano, ele sequer perdia a tranquilidade e a paz de espírito. Conta-se que certa feita, fazendo a sua caminhada matinal, como de costume, deu de cara com alguém que fora contratado para dar fim a sua vida. Cara a cara com o matador de aluguel, entreolhando-se, seu algoz disse-lhe: “Eu não mato ninguém sem antes olhar no seu olho. Mas diante do que vi em seus olhos, não tenho coragem o bastante para tirar a sua vida”. E se perdeu na penumbra do dia que vinha amanhecendo.

Tinha uma frase que sempre repetia para nós quando a situação se tornava difícil: “O contrario da fé, não é a dúvida. O contrario da fé, é o medo. E o pior de tudo é quando a gente tem medo do medo”. Penso que esta sua frase muito nos ajuda a decifrar este atual contexto desta nossa noite escura. Uma noite que insiste em não querer amanhecer e assim nos trazer o sol de novas perspectivas. Ouço Pedro ainda me dizendo ao pé do ouvido: “Chicão, são nas noites mais escuras que podemos ver com maior clareza as estrelas. E por mais escuras que sejam, o amanhã vai chegar”.

Experimentei situação semelhante assim que cheguei à prelazia de São Félix do Araguaia, lá pelos idos de 1992. Acostumado com as luzes intensas da capital paulista, na primeira noite que passei no sertão, avistei um céu de brigadeiro, cheio de estrelas incandescentes. Tão próximas, que tive a sensação de que poderia tocá-las com as mãos. Iniciando ali os meus primeiros anos no sacerdócio, apaixonei a primeira vista pelo pelas noites do sertão. No tempo que a energia elétrica não havia chegado por ali ainda. Passava horas e horas ali contemplando aquela maravilha de Deus com toda a sua perfeição.

O medo dos judeus reinava entre os seguidores de Jesus. Nesta sua aparição, Jesus sente que eles estavam muito perturbados, dominados pelo medo. Tanto que mais de uma vez Ele lhes diz: “A paz esteja com vocês”. (Jo 20,21) Jesus entende que se persistir naquele medo, eles não serão capazes de dar testemunho da sua presença viva no meio deles. O medo impede o anúncio e o testemunho. Ao transmitir-lhes a paz, Jesus os libertam do medo, mostrando-lhes que o amor doado até a morte é sinal da vitória maior, da alegria e não do medo. Depois disso, os convoca para dar continuidade à missão no meio do mundo, infundindo neles o Espírito da vida nova, mostrando-lhes o objetivo da missão: continuar a atividade que Ele havia começado.

Nós também, muitas vezes mantemos fechadas as nossas portas. Trancafiamos em meio às muitas portas que criamos como forma de não nos envolvermos na ação de transformação do meio em que vivemos. Aquelas mesmas portas que vamos criando ao longo de nossas vidas. Portas estas que mantemos fechadas pelo medo que temos de dar testemunho do Ressuscitado que conosco vive. Ao invés de darmos testemunho da vida d’Ele que veio para ficar, nos envolvemos com um corolário de dogmas, preceitos morais, preconceito, indiferença, intolerância, tudo decorrente da nossa falta de amor a nós mesmos, à vida e ao projeto de Deus revelado em Jesus de Nazaré. O mistério maior da vida está presente entre nós. É Deus mesmo que se torna presente e atuante através do anúncio feito por aqueles e aquelas que nele acreditam, abrindo todas as portas de nossas vidas para que Ele seja a única porta pela qual passamos.