Descoloniza e desevangelizar

Viva são João! Hoje (24) é o dia de uma das festas mais populares do povo brasileiro. Se não fosse a pandemia, o Brasil estava em festa. Lembro-me de quando criança, a nossa mãe tinha a devoção de “levantar o mastro” de São João. Todos os anos, lá estávamos nós, cumprindo fielmente esta devoção que ela nos passou. Fazia a fogueira, rezávamos o terço, todos ali à sua volta e depois lá estava São João, imponente a frente da nossa casa, num mastro todo enfeitado. Isso depois de passar cantando os cânticos apropriados em volta da fogueira. Crescemos mantendo esta devoção que ela nos legara.

Os tempos hoje são outros. Em virtude da pandemia, estamos impedidos de fazer valer esta devoção da forma como as famílias estão acostumadas. Mesmo em tempos de isolamento, algumas pessoas dentre nós, seguem aprontando das suas. Nesta madrugada, por exemplo, os povos indígenas Xakriabá da aldeia Barreiro Preto, no município de São João das Missões, em Minas Gerais sofreu um incêndio criminoso, destruindo sua escola e a casa de medicina tradicional. As agressões aos povos indígenas seguem acontecendo como se fosse a coisa mais normal. Ou seja, naturalizamos as agressões a estes povos e nenhum órgão oficial trabalha para conter e punir tais crimes.

A violência contra os povos originários começa de cima. Aqueles que deveriam cuidar para que o texto constitucional não se transformasse em letra morta, são os primeiros a rasgar a Constituição. Ontem, deram mais uma demonstração de suas manifestações nefastas ao povo indígena ao aprovarem por 40 a 21 o Projeto de Lei (PL 490/2007). A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), simplesmente rasgou e pisoteou o texto constitucional, que trata das questões relacionadas aos povos indígenas. Agora vai para o plenário da Câmara dos Deputados, para a votação final. Espera-se ao menos que os senhores “representantes do povo” possam corrigir este crime que estão cometendo contra as comunidades indígenas deste país. “Quanto mais esperto o homem se julga, mais precisa de proteção divina para defender-se de si mesmo.” (Proverbio Seneca)

As agressões aos povos originários remontam ao processo de colonização, no início do século XVI. Desde lá, eles vêm sofrendo todas as formas de ameaças e perseguições. Situação que ainda perdura com a herança colonial perversa, sustentada, inclusive pelas nossas escolas e universidades, pois as mesmas terminologias utilizadas pelos colonizadores estão presentes no vocabulário de seus professores. O termo genérico “Índio”, a quem o colonizador denominou todas as diversas etnias que aqui habitavam, ainda hoje é linguagem comum. Ignoram que cada povo é único, com a sua especificidade própria, sua língua e suas manifestações culturais completamente distintas umas das outras etnias. Nestas horas me recordo daquele professor indígena, quando alguém se referiu a ele chamando-o de índio, ao que prontamente respondeu: “Eu não sou índio, eu sou Xavante”.

Os órgãos brasileiros criados com a finalidade de defender os povos indígenas não fugiram muito desta ideia genérica herdada do colonizador. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, prestou um serviço subalterno às comunidades indígenas, pois trazia em sua essência a filosofia de incorporar o indígena à comunhão nacional, considerando-o como um cidadão “não brasileiro”, que precisava vir para dentro da “comunhão nacional” para se tornar brasileiro como os demais que nasciam neste território. Este órgão perdurou até 1967, quando então foi substituído pela Fundação Nacional do Índio. Por mais boa vontade e trabalho sério, por parte de alguns indigenistas que por lá passaram ou ainda estão, o órgão em si, hoje encontra-se sucateado e pouco efetivo no serviço de defesa e proteção dos povos indígenas. Algumas das suas Administrações Regionais, estão sendo geridas por militares aposentados. Um destes gestores, inclusive, no início do processo de vacinação contra a Covid-19, trabalhou na tentativa de convencer os indígenas a não aceitarem ser vacinados, propagandeando a ideia negacionista. Desta forma, não nos surpreendeu quando o administrador do órgão em Brasília, chamasse a polícia, para reprimir com violência a manifestação pacifica dos indígenas, na frente do referido órgão, exigindo que a FUNAI os defendesse na votação que iria acontecer na CCJ.

Precisamos urgente descolonizar e desevangelizar, quando se trata dos povos originários. Duas palavras fortes e de um significado muito significativo. Descolonizar os muitos conceitos que ainda mantemos e que faz parte do senso comum de nosso povo. Descolonizar a visão torpe e míope que muitos de nós ainda temos acerca dos povos indígenas. Também desevangelizar, pois o serviço prestado pela Igreja católica ao longo do processo de colonização foi deveras sagaz, quando propôs que o “índio” fosse batizado, porquanto não possuía alma. Com sua atitude naquele atual contexto, “a espada e a chibata que durante o dia feria os corpos de indígenas e negros, a noite se transformava na cruz que domesticava a alma destes povos.” (L. Boff) Se não se conhece a história de luta dos povos indígenas, ao menos deveríamos agir com empatia, lembrando de uma das frases ditas pelo filosofo francês Emmanuel Levinas (1906-1995): “O outro é o outro eu”, já que todos trazemos em nós o sangue indígena.