Desinstalar é preciso

Segunda feira da décima segunda semana do tempo comum. Iniciamos mais uma semana em nossa trajetória de vida. Gostaríamos que esta fosse mais uma semana em que tivéssemos as certezas de outrora. Mas não é assim. Seguimos nos precavendo e cumprindo aquilo que nos pedem as autoridades mais sérias. Protegendo a nós e a todos aqueles que amamos e queremos bem. Usar máscaras na atual conjuntura, é ter um nós uma atitude de respeito as demais pessoas. Um verdadeiro ato de humanidade. Quando perdemos esta humanidade, perdemos a nossa essência vital e o imperativo primordial que é o cuidado com o outro. Nestas horas, o “cada um para si”, se torna a atitude mais infame que poderíamos adotar.

Permitam-me refletir hoje sobre um dos textos mais significativos que podemos adotar para as nossas vidas, principalmente levando em conta o contexto atual que estamos ora vivendo. Na primeira leitura que nos é proposta na liturgia de hoje, Deus se dirige ao idoso Abraão (75 anos) e lhe diz: “Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei.” E não é que o homem aceitou! Deixou tudo para traz e foi ao destino que o Senhor lhe confiou. Confiança total! Entrega confiante nas mãos de Deus, mesmo com todas as adversidades que um homem na sua idade possuía. Mas mesmo isto, não foi empecilho para que aquele homem entregasse piamente a sua vida nas mãos de Deus.

A história de vida deste homem, pode ser a história de todos nós. História esta que está ligada a história de toda a humanidade. Com ele podemos dizer que há o surgimento do embrião de um povo que terá a nobre missão de ser a bênção de Deus para todas as nações da terra. Povo este que trará em si o projeto libertador de Deus. Entretanto, tudo isso começa pela fé e pela confiança inabalável de que o caminho a ser percorrido terá o aval e a proteção do próprio Deus, que se fará presente nesta caminhada, orientando cada passo. Abraão ainda conquista o seu sonho de todo nômade, que era o de possuir a sua terra, para nela morar e criar os seus animais.

Deus sempre está nos provocando para este passo mais além. Ele nos instiga a não ficar acomodados na nossa zona de conforto. Pede que sejamos capazes de assumir novos ares, novas possibilidades, para além do nosso comodismo, próprios dos seres humanos. “Sair da nossa terra” onde nos sentimos tranquilos e confortáveis para outra realidade que se constituem em enormes desafios. Quantos de nós estamos estacionados na vida e não ouvimos os apelos de Deus, para que saiamos de nós mesmos para ir onde o outro está na sua vulnerabilidade, para sermos um com ele. Rezamos a nossa oração frequentemente, mas tão somente queremos que Deus ouça o nosso clamor. Poucos de nós estamos suficientemente sensíveis, e somos capazes de abrir os nossos ouvidos e o nosso coração, para escutar o que o nosso Deus tem a nos dizer, como o fez Abraão. Aqui me lembro de uma das falas ditas pelo Papa João Paulo II quando afirmava que, o maior problema da humanidade é que as pessoas haviam perdido a capacidade de escutar uns aos outros. Se não ouvimos o que o outro tem a nos dizer, dificilmente ouviremos Deus a nos falar no íntimo de nosso coração.

Desinstalar sempre! esta é a palavra de ordem escrita no coração do próprio Jesus. Quando Ele pede que os seus para irem a outra margem, Ele quer que saiam de si mesmos para irem à terra dos pagãos e daqueles que não valiam nada para os dirigentes políticos e religiosos daquela sociedade de sua época. Evidentemente que os seus seguidores resistiram, pois não os viam com o mesmo olhar de Jesus. Nós também temos as nossas resistências de olhar para a realidade dos empobrecidos com o mesmo olhar de Jesus. É muto mais fácil ficar entortando o pescoço, numa falsa piedade nos templos, do que enfrentar a crueza da vida daqueles que estão à margem de nossa sociedade. Quantos templos não se enchem de adoradores de Jesus, de pessoas que não conseguem enxergar a via crucis percorrida por Jesus até o calvário, passando pela Galileia, lugar de gente que nada valia, a ralé, como dizemos hoje.

Este texto de hoje me faz recordar da decisão que tomei, no meu terceiro ano de jovem sacerdote, diante do convite de Pedro para vir trabalhar na Prelazia de São Félix do Araguaia. Guardadas as devidas proporções, claro. Era uma mudança radical em minha vida. De alguém que trabalhava alegre e feliz na periferia de São Paulo (Zona Leste), para as Florestas do Mato Grosso. Não me senti como Abrão, mas me senti provocado diante daquele bispo, por quem eu tinha uma enorme admiração. Durante toda a viagem, o meu coração era só palpitações. Situação que mudou assim que cheguei em São Feliz (1992) e entrei em sua casa. Ali, senti que tinha tomado a decisão acertada. Não me senti um Abraão, longe disso. Mas me senti “um prelazia”, com muito orgulho de estar trabalhando numa igreja da fronteira, em todos os sentidos que esta palavra podia trazer em si.