Dia 19 de abril. Dia em que no Brasil se comemora o dia do índio. Entretanto, na é desta forma que os povos originários vêem este dia. Pelo contrário, eles não têm nada a comemorar neste dia, sobretudo nestes últimos anos. Para eles é apenas mais um dia de luta e resistência, para fazer valer os seus direitos, assegurados pela Constituição Federal de 1988 (Art. 231, 232), que a cada dia estão sendo negados. A Lei Maior do país está sendo rasgada a cada dia. Nestes dois últimos anos, então, a situação é deverasmente preocupante, na luta pela sobrevivência das comunidades indígenas no território brasileiro.
O grito destes povos é uníssono, como atesta a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que assim denuncia: “Retrocessos nos direitos conquistados nas últimas décadas, omissão na demarcação de terras e desestruturação da Fundação Nacional do Índio (Funai) são algumas das queixas que o Ministério Público Federal (MPF) faz no balanço sobre a política indigenista implementada pelo governo Bolsonaro no último ano”. Uma política anti-indígena, marcada pelo preconceito, pela indiferença, pelo desconhecimento e, sobretudo pela ganância daqueles interessados em na invasão dos territórios indígenas.
Apesar de existirem tantos grupos étnicos entre nós, a sociedade brasileira pouco conhece acerca destes povos. O pouco de conhecimento que ainda possui sobre eles é ainda marcado por uma herança colonial perversa, proveniente do legado dos colonizadores que por aqui pisaram, saqueando e destruindo tudo o que encontraram pela frente. A própria terminologia “índio”, precisa ser desconstruída, uma vez que se trata de um termo genérico, que não contempla, de fato, a especificidade de cada uma das etnias destes povos ancestrais.
“Os Povos Amazônicos possuem entidade própria, sabedoria própria, consciência de si. Eles têm uma maneira de ver a realidade e tendem a ser protagonistas da própria história.” Foi com estas palavras que o Papa Francisco abriu o Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica, que se reuniu no Vaticano entre os dias 6 a 27 de outubro de 2019. Um acontecimento importante e que deu visibilidade às causas indígenas, num país que não aprendeu ainda a respeitar estes povos, sua cultura, seus usos, costumes e tradições.
Pedro era considerado pelos povos indígenas aqui de nossa região como o “guardião dos povos indígenas”. Desde a sua chegada nesta região, o bispo sempre manteve uma atitude respeitosa para com estes povos. Como ele comumente dizia, “os povos indígenas são mestres da ecologia, da comunitariedade e da partilha”. Ainda ressoa em meus ouvidos a orientação que me foi dada por ele de quando entrei pela primeira vez em uma aldeia indígena: “a prelazia de São Felix do Araguaia está aqui para ‘desevangelizar’ e ‘descolonizar’ os povos indígenas.”
Nunca é demais lembrar que todos nós, de alguma maneira, trazemos em nós o sangue indígena, o sangue dos povos originários: uns nas veias, outros no coração e alguns outros ainda em nas mãos ensanguentadas. Somos diretamente influenciados por estes povos, seja nas palavras herdadas, na nossa culinária, no modo de ser e viver. Entretanto, isto não é suficiente para que os tratemos com o devido respeito que merecem, na sua forma de organização de sociedade e no jeito de lidar com o meio em que vivem. O preconceito ainda fala mais alto na nossa relação com eles.
É preciso que haja um processo de desconstrução de vários conceitos relacionados aos Povos Originários. Alguns historiadores, por exemplo, não trabalham com o conceito “descobrimento”. O que veio a se chamar Brasil não foi descoberto, mas invadido, com a sobreposição da cultura europeia sobre as culturas milenares que já habitavam por aqui. Particularmente, gosto do termo utilizado pelo filósofo argentino, Enrique Dussel: o que houve no Brasil foi um “encobrimento”, ou seja, a prevalência da supremacia da cultura européia, sobre a dos milhares de povos que aqui habitavam, falando mais de mil línguas distintas.
O poeta Manuel Bandeira, tem uma citação singular, que poucos de nós conhecemos a este respeito. Diz ele: “No dia em que Portugal ‘descobriu o Brasil’, o Brasil perdeu a felicidade.” Na realidade, fomos “descobertos” por mero acaso. Perdidos que estavam, achavam que estavam chegando às índias e, por este motivo, deram o nome de índios, aos que aqui já residiam. Um Brasil que já era belo por natureza e de encantos mil. Um Brasil que possui uma extensão territorial de 851.196.500 hectares, ou seja, 8.511.965 km2. Todavia, as terras indígenas (TIs) somam 723 áreas, ocupando uma extensão total de 117.427.323 hectares (1.174.273 km2). Assim, 13.8% das terras do país são reservados aos povos indígenas. E deste total, apenas pouco mais de 8%, são demarcadas. As demais, nem homologadas ainda foram.
Demarcação já! Este é o grito que se ouve de todas as lideranças indígenas. Celebrar, comemorar o dia dos povos indígenas é estar preparado para todo tipo de infortúnio, principalmente porque, suas terras são objeto de desejo e consumo de muitos: madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, agro-negócio, pecuaristas. Muitos indígenas deram suas vidas por esta causa. Muitas lideranças indígenas estão sendo perseguidas, outras foram assassinadas, só pelo fato de desejarem viver sossegadamente sobre suas terras ancestrais. Por este motivo que o dia 19 de abril transformou-se num dia de luta e resistência na defesa de seus direitos.