E o vírus chegou

Tenho vivido dias muito tristes com esta pandemia. Dia após dia, seguimos com as notícias tristes, que vem das aldeias indígenas. Cada dia, uma vida se vai. Cada dia, o vírus leva alguém do meio indígena. O que mais temíamos, aconteceu, e o vírus entrou nas aldeias. Uma tragédia, pois as autoridades políticas não pensaram estratégias para o atendimento diferenciado para os povos indígenas. Como muitos estados estão com os sistemas de saúde colapsados, as mortes vão acontecendo numa velocidade assustadora.

Os indígenas sempre foram vítimas da contaminação das doenças desconhecidas. É assim desde o período da colonização. As atrocidades do colonizador português e brasileiro eram tamanhas, que deixavam nas matas, roupas com o vírus da varíola e do sarampo para que os indígenas fossem infectados. Centenas de milhares deles foram mortos com as tais doenças, como atestam os relatos da época. Desta forma, ficava mais fácil minar a resistência destes povos à invasão do homem branco às suas terras.

Os indígenas gozam de pouco prestígio para a elite que passou a tomar conta do país. Muitas pessoas das classes populares, por desconhecimento acerca dos povos indígenas do Brasil, engrossam o discurso desta elite, colocando os povos indígenas como atrasados e contrários ao desenvolvimento do país, como afirmam o governo atual. Assim, diante da chegada de uma pandemia que já havia atingido os países da Europa, não houve preocupação alguma de defender os povos indígenas, de um vírus letal. Bem que os profissionais de saúde, que atuam nas aldeias, fizeram e ainda fazem a sua parte, mas era necessário ter pensado algo diferente que pudesse atender aos povos indígenas e às suas especificidades.

Os indígenas estão amedrontados. Todos estamos amedrontados. A tristeza é geral, diante da impotência, frente a algo que é maior que eles e que não conseguem compreender. Um povo vulnerável às doenças que não são típicas de cada etnia. E a morte chegou pra valer. Esta semana mesmo, três pessoas Xavante da mesma família, perdeu seus entes: Pascoalina, Verônica e Hilário Ab Reta Awe Predzawe, de 43 anos de idade.

Hilário era aluno do 5º período de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFG. Estudava com muita dificuldade, pois os alunos indígenas estudam através de bolsas. Nestes últimos governos, estas tais bolsas tem sido sistematicamente cortadas. Numa destas ocasiões, o referido aluno, deixou de frequentar o curso. Sabendo disso, colegas e professores da universidade, cotizaram e ajudaram para que o mesmo, voltasse às aulas. Segundo depoimento dos colegas de turma, assim que pisou novamente na universidade, ficou surpreso de saber que os colegas e professores, haviam sentido a sua falta. Não é desta forma que a sociedade os trata.

O Mundo indígena está de luto. Outra morte também muito sentida foi a do líder do povo kayapó e militante ecológico, Paulinho Paiakan, também vítima da Covid-19, no Hospital Regional Público do Araguaia, no Pará, onde estava internado desde o último dia 9 último, apresentando insuficiência respiratória severa. Os povos indígenas perderam um de seus maiores ídolos e referência. Paiakan, incansável guerreiro na luta de seu povo, se destacou também como uma das lideranças contrárias a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, por causa de seu impacto devastador para os povos indígenas.

Quando morre uma liderança, um ancião no meio indígena, vai com ele também todo o conhecimento e cultura. Quem perde com isso é o povo indígena, mas é também toda a humanidade. Na forma de organização das sociedades indígenas, a transmissão dos elementos culturais, tais como, a mitologia, os rituais e os costumes, é feita oralmente e, são os idosos que desempenham essa função fundamental para a sobrevivência destes povos. A oralidade da cultura acontece em todas as etnias. Desta forma, o ancião é extremamente valorizado, pois ele é um arquivo vivo de saberes tradicionais.

Novos e velhos estão morrendo no meio indígena. Os sonhos da juventude estão ficando pelo caminho e os saberes tradicionais estão partindo com os anciãos. Que tristeza ver que os povos indígenas estão sendo dizimados mais uma vez em nossa história! Não bastasse a luta para permanecerem sobre seus territórios, mais uma vez, a doença do homem branco chega para fazer estrago em suas aldeias. Meu coração dói muito, de estar aqui de fora, e pouco poder fazer, para ajudar a minorar este sofrimento.