Entre a coragem e a esperança

Terça feira da 24ª semana do tempo comum. Dia em que a Igreja Católica celebra a Exaltação da Santa Cruz. Parece paradoxal, celebrar a cruz, já que ela era considerada como um castigo infringida aos malfeitores, uma das penas mais cruéis da história das civilizações. Além da tortura e do sofrimento imputado à vítima, tinha ainda o objetivo de expô-la à execração pública, para que servisse de exemplo à todos que a vissem. Entretanto, para nós cristãos, ela é o símbolo da resistência e da vitória de Jesus de Nazaré sobre a morte. Deus, ao ressuscitar Jesus, nos mostra que a morte não tem a última palavra, mas a vida que prevalece na pessoa do Cristo Ressuscitado.

Nosso bispo Pedro tinha uma forma peculiar se referir a cruz de Jesus. Segundo ele, “quando olhamos para a cruz de Jesus, lembramos de que Ele não está mais ali, pois está vivo ressuscitado. Cabe a nós, seus seguidores e seguidoras, ajudar a descer da cruz, os pobres, crucificados ao longo da história”. Assim, a cruz de Jesus ganha uma dimensão de continuidade, através das nossas ações libertadoras, trazendo para junto de nós as perspectivas do Reino. Exaltando e abraçando a cruz de Jesus, abraçamos o amor pelas causas pelas quais Ele veio. Aquilo que rezamos com o salmista: “O amor e a fidelidade se encontrarão; a justiça e a paz se abraçarão. A fidelidade das pessoas brotará da terra, e a justiça de Deus olhará lá do céu. O SENHOR Deus nos dará o que é bom, e a nossa terra produzirá as suas colheitas. A justiça irá adiante do SENHOR e preparará o caminho para Ele”. (Sl 85, 10-13)

Exaltação da cruz e exaltação da vida de alguém que abraçou também a cruz de Jesus. Se vivo fisicamente estivesse entre nós, Dom Paulo Evaristo Arns, estaria completando hoje 100 anos. Um homem de fé, que soube fazer de sua vida um seguimento bem de perto nas mesmas pegadas de Jesus. De profunda coragem, frente aos desafios postos na sua atuação enquanto bispo na “Pauliceia Desvariada”. Desde quando foi sagrado bispo daquela megalópole (1966), teve em seu brasão episcopal a frase: “de esperança em esperança”. A coragem e a esperança caminhando juntas, marcando assim a vida deste homem à frente da Igreja de sua época.

Dom Paulo estava a frente de seu tempo. Por pura inspiração sua, administrou a arquidiocese, constituindo as chamadas “Regiões Episcopais”, através de um colegiado de bispos, formando uma unidade de pensamento e ações. Um bispo voltado para a periferia, preocupado em ser uma igreja que estivesse viva e presente, sintonizada com os direitos dos empobrecidos que ali habitavam. Não foi à toa que em 1973, vendeu o palácio episcopal onde morava, comprando cerca de 1.200 lotes na periferia, distribuindo aos pobres, para que pudessem construir a sua morada. O mesmo havia feito Dom Hélder Câmara, assim que voltou do Concílio Vaticano II, que entregou o palácio para as pastorais sociais, e foi habitar num quartinho, nos fundos de uma das igrejas do Recife.

Dom Paulo chefiava uma igreja formada por várias Regiões Episcopais. Comandava um colegiado de bispos que falavam a mesma linguagem. Ele mesmo ia a frente mostrando o caminho através de suas atitudes. Também formávamos um colegiado de padres, trabalhando numa mesma direção, tendo Dom Paulo como modelo de seguidor do Mestre de Nazaré. Me lembro que entre os anos de 1989 a 1991, eu estava presente nesta caminhada, fazendo acontecer na periferia da zona leste, o sonho de Jesus com o seu Reino. Dom Angélico era o nosso bispo, em São Miguel Paulista, que por sua vez estava antenado com a caminhada proposta pelo nosso cardeal Arns.

Nas vezes que me encontrei com Dom Paulo, ficava fascinado de estar diante daquele homem tão convicto no seu jeito franciscano de seguir o ressuscitado. Numa destas vezes, na abertura do Curso de Verão do CESEEP, ele fazia questão de estar ali conosco, dando as boas vindas na PUC-SP. Falava das atrocidades cometidas pelos militares, durante a ditadura, e nos mostrava as paredes queimadas do teatro da universidade (TUCA), como símbolo de resistência, para que todos pudessem ver e não perdessem a memória, do que foi aquele triste período de nossa história. Também fazia questão de dizer que, durante uma das invasões daquela universidade feita pelos militares, disse a eles que retirassem os seus pés daquele espaço, uma vez que na universidade só entrava quem fosse convidado ou que passassem no vestibular. Eles, os militares, não eram nem uma coisa e nem outra.

Homem de muita coragem que vivia de esperança em esperança, fez a sua páscoa no 14 de dezembro de 2016. A Igreja no Brasil estava de luto, pela perda de um de seus maiores expoentes na luta pelos povos da periferia e dos Direitos Humanos. Difícil foi dizer para Pedro sobre a partida deste seu grande amigo. Assim que o dissemos, uma lágrima teimosa escorreu pelo rosto de nosso profeta, acompanhada do seguinte comentário: “Quando vejo um amigo partir, eu lembro que também estou na fila”. No centenário de nascimento deste profeta dos direitos humanos, fiquemos com uma das frases que resume bem a sua incansável luta contra a ditadura militar: “No Brasil, é necessário lutar pelos direitos de todos e pelo fim da exclusão social. As grandes esperanças moram em horizontes distantes e ainda desconhecidos. A Igreja do Brasil mostrou poucas reações seguras contra torturas, desaparecimentos e mesmo prisões arbitrárias.” Assim pensava e agia o profeta corajoso da esperança.

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.