Entre o amor e o ódio

Segundo sábado (27) da quaresma. Um período apropriado para repensarmos a nossa caminhada de fé, no compromisso de seguir as pegadas de Jesus. Tempo este que vai até a quinta-feira Santa, ocasião em que celebramos a última ceia de Jesus com seus seguidores e seguidoras. Lembrando que a palavra “Quaresma” advém do latim “quadragésima”, e quer significar o período de quarenta dias que antecede a festa mais importante do cristianismo, que é a Ressurreição de Jesus, comemorada no Domingo da Páscoa. Mesmo sendo um tempo que chamamos de penitencial, não pode ser um tempo de tristeza e depressão. Devemos sim encará-lo como um tempo especial de purificação e renovação da vida cristã, para poder participar com maior ênfase do mistério Pascal do Senhor.

É neste clima é que vamos refletindo dia após dia uma liturgia apropriada para o período. No dia de hoje, por exemplo, Jesus pegou pesado, quando nos alerta que devemos amar também os nossos inimigos: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!” (Mt 5, 44) Amar os amigos e as pessoas que a gente quer bem é relativamente fácil. Agora, amar os inimigos é uma tarefa pra lá de difícil e complicada. Como sempre, Jesus é muito exigente para com aqueles e aquelas que quiserem trilhar os seus caminhos. Todavia, nada que não seja possível para aqueles que trazem em seus corações, os caracteres do amor incondicional. Desta forma, somos desafiados a amar e perdoar da mesma forma como Deus age para conosco.

Não é atoa que o amor é este sentimento nobre que podemos trazer dentro de cada um de nós. Neste sentido, Jesus está nos propondo uma perspectiva nova de relacionamento humano, para além das fronteiras que costumamos construir entre nós. Ao nos propor amar o inimigo, Ele está a nos dizer que precisamos pautar a nossa relação concretamente com aquele outro que se apresenta como problema para mim. Não ignorando os conflitos que possam existir entre nós e nem esquecendo aquilo que possa existir de errado. Amar é antes de tudo, saber perdoar. Perdoar é não se lembrar com rancor dos erros que o outro cometeu e ficar remoendo dentro de si.

Amar os inimigos numa sociedade dominada pelo ódio e pelo rancor se torna mais difícil ainda. Uma tarefa quase impossível, que exige ainda mais de cada um de nós. O ódio está presente nas nossas relações. Neste contexto, torna-se mais difícil ainda cumprir aquilo que Jesus nos pede. Em tempos de redes sociais, criaram até os gabinetes, que se especializaram em disseminar o ódio entre nós. Sentimento este que fica bastante elucidativo numa das frases atribuídas ao médium brasileiro Chico Xavier quando afirma: “O ódio não é senão o próprio amor que adoeceu gravemente.”

Alguns dentre nós não estão sendo movidos pelo amor, mas pelo sentimento de ódio. A própria psicologia nos ajuda entender que, quando nos deixamos vencer pela raiva, experimentamos em nós certo espírito de destruição, uma vez que este ódio que alimentamos dentro de nós, destrói primeiro aos que odeiam e não o ser odiado. Seguindo nesta mesma sequência lógica, faz sentido aquilo que nos foi dito pelo escritor e dramaturgo inglês, William Shakespeare: “A raiva é um veneno que bebemos esperando que os outros morram.”

Também o filósofo, sociólogo, professor e escritor polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) nos ajudou a entender um pouco mais deste atual momento em que estamos vivendo. Ele inaugura para nós um conceito denominado de, “Modernidade Líquida”. Ou seja, a partir da década de 60 as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. Em outras palavras, as relações sociais são descartáveis, sobretudo numa época em que as pessoas são dominadas pelo consumo exagerado de produtos muitas vezes desnecessários. O mesmo fazendo com as relações entre as pessoas.

Mas voltando ainda ao conselho de Jesus convenhamos, amar quem sai por ai, em plena pandemia, sem máscaras, aglomerando, contrariando todas as recomendações dos sanitaristas, e ainda afirmando que não estamos vivendo uma pandemia, mas uma gripezinha, confesso que exige de nós um exercício supra-humano. Como amar e perdoar quem não deu a menor importância, às mais de 250 mil vidas que nos foram tiradas de forma abreviada? Como amar e perdoar aqueles que estão mais interessados nos seus horizontes políticos, do que nas famílias que estão passando fome e necessidade estrema? Como amar e perdoar aqueles que, mesmo em plena crise sanitária, econômica, social e política, enriqueceram ainda mais a sua conta bancária?

Todavia, quando Jesus nos propõe que devemos amar e não odiar os nossos inimigos, ele sabe que isto é o melhor para nós. Quem traz o amor dentro de si, tem o sopro divino da vida. Pelo menos não vamos carregar dentro de nós um espírito de destruição e morte, uma vez que o amor liberta, enquanto o ódio aprisiona. É o amor que nos faz caminhar na direção do horizonte das nossas realizações pessoais e coletivas. Parafraseando o cantor e compositor Renato Russo: “A diferença do amor e do ódio, é que pelo ódio a gente mata, e pelo amor a gente morre.” Que sejamos impregnados pelo carisma Jesuano, para que saibamos amar e perdoar sem medidas, sendo “perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”. (Mt 5, 48)