Entre o corpo e a alma

Terça-feira (16) da quarta semana da quaresma. Rezei hoje na companhia dos irmãos macacos, que vieram até o meu quintal colher os frutos de buriti para saciar a sua fome. Chamou-me a atenção a destreza deles na colheita dos frutos. Subiam e desciam do buritizeiro e batiam o fruto sobre o muro para que o mesmo se partisse, levando posteriormente à boca, degustando o fruto com uma habilidade de fazer inveja. Foi assim que me vi dialogando com o meu Deus nesta manhã. Entre uma prosa e outra com ELE, me via contemplando aquele espetáculo da natureza. Impossível não sentir ali a presença do Criador, com o seu projeto de nos fazer todos interligados.

Meu coração está em pedaços. Um de meus amigos está internado no hospital da Covid-19 em São Félix, a espera de uma vaga na UTI, para ser removido. Tadeu, que foi prefeito anos atrás, na cidade de Santa Terezinha-MT, pelo PT, não estava conseguindo respirar sem a ajuda de aparelhos. Esta doença é terrível, pois vai asfixiando as pessoas, não as deixando respirar normalmente. Uma das piores coisas que pode nos acontecer é buscar o ar e não encontrá-lo, para oxigenar os pulmões. Estou pedindo a todos os que lerem estes meus rabiscos de hoje, para que faça uma pequena prece pelo meu amigo Tadeu Escame.

Também todos nós brasileiros mais lúcidos e esclarecidos, estamos meio que asfixiados com a atual conjuntura de sociedade que estamos vivendo. De um lado, a médica cardiologista Ludhmila Hajjar, foi ameaçada de morte nesta segunda-feira (15) ao ser convidada para substituir Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde. “Eu fui agredida, ameaçada de morte, tentaram invadir o hotel que eu estava. E onde eu estou agora? Aqui falando pra todos. Onde eu estarei mais tarde? Cuidando dos meus pacientes. E amanhã? À disposição do Brasil”, afirmou ela nas mídias televisivas na noite de ontem.

A que ponto chegamos! Uma pessoa ser agredida, maltratada, tendo o seu celular invadido. Perseguida por causa de sua forma de pensar perante a realidade posta. A intolerância é tamanha que, o outro não pode pensar diferente da maneira que pensa os arautos da verdade absoluta. O outro divergente de mim, não é um adversário, mas um inimigo a ser combatido odiosamente. É assim que estamos vendo acontecer as coisas nestes tempos sombrios de negacionismos e desprezo pelos conhecimentos sistemáticos. Até onde iremos nós? Este é o tipo de pergunta difícil de ser respondida.

No campo religioso, seguimos nós na mesma toada. O dualismo corpo/alma que imaginávamos ter sido superado com a ajuda profética do Concílio Vaticano II (1962-1965), ganha a luz do dia, através de alguns membros da Igreja Católica. A reivindicação de algumas destas lideranças religiosas é pela abertura das portas das igrejas, para que as pessoas possam, livremente, buscar alimento para suas almas. Mesmo sabendo que o corpo destas pessoas corre sérios riscos de serem infectados pelo vírus, o que mais importa é salvar as suas almas. Segundo esta lógica, o corpo nada vale.

Corpo e alma, qual dos dois tem a prevalência? Este dualismo, corpo-alma é caracterizado por um entendimento de que as duas partes compõem o ser humano. Desta forma, o ser humano é compreendido de maneira fragmentada, estabelecendo certa hierarquia entre ambas as partes, com a alma ganhando um papel de maior relevância diante do corpo. Esta é uma das heranças do pensamento filosófico de Platão (428/427-348/347) Este é o típico pensamento que ainda perdura na prática pastoral de alguns religiosos nos tempos atuais. O que mais assusta e preocupa é saber que algumas destas lideranças são constituídas de pessoas jovens que estão chegando à Igreja mais recentemente.

Mesmo que os corpos estejam sendo maltratados e mutilados por uma sociedade que prioriza salvar os projetos econômicos, em detrimento da vida dos crucificados, a primazia ainda é pela alma que, segundo este pensamento, está sendo perdida. O importante é salvar a alma, mesmo que o corpo já esteja pela hora da morte. Neste sentido, Pedro tinha uma atitude peculiar na defesa da pessoa humana integral. Se o corpo não vai bem, a alma também não. Cuidar dos corpos feridos é uma das formas de cuidar da alma. Pelo menos esta foi a resposta dada por ele a um dos jornalistas que o entrevistava, preocupado que estava de não ter visto o bispo referir-se à alma das pessoas em seus vários escritos: “É que eu não vi nenhuma alma passando aqui pela porta de casa. O que vejo são corpos sofridos de crucificados, pela ação do latifúndio, com suas armas de morte”

Situação semelhante vimos na ação de Jesus no Evangelho de hoje (Jo 5,1-16). “Levanta-te, pega tua cama e anda. No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou sua cama e começou a andar”. (Jo 5, 8-9) Uma ação concreta em favor daquele pobre paralitico. Jesus não lhe pergunta se queria que lhe salvasse a sua alma, mas devolve ao mesmo a oportunidade de voltar a andar. Lembrando que na figura do paralítico está presente o povo oprimido e paralisado, à espera de alguém que o liberte das garras do opressor. Jesus vai ao encontro deste homem e permite que ele mesmo encontre a sua liberdade e decida por onde quer caminhar. Todavia, para desespero das autoridades ali presentes, Jesus faz tal ato em pleno dia de sábado, quando era inadmissível que tal ato pudesse acontecer, já que a lei proibia. Jesus que revoluciona a lei e a coloca a serviço da vida do ser humano por inteiro.