Quinta-feira (11) da terceira semana da quaresma. Já estamos com a semana do meio para o fim. O dia de hoje é um dia muito especial na minha vida. Há exatos 29 anos, estava eu chegando a distante Prelazia de São Félix do Araguaia, depois de uma viagem épica. Nunca tinha pisado os meus pés por estas bandas de Mato Grosso. Tudo era novidade para um jovem padre, que saiu da periferia de São Paulo (Zona Leste) e veio enfrentar os novos desafios, ao lado daquele bispo que despertava em nós mais jovens, tanta admiração e desejo de conhecê-lo: Pedro Casaldáliga.
O convite para estar aqui fora feito pelo bispo, alguns meses antes. Ocasião em que este ministrava uma palestra na Região Episcopal de São Mateus, na paróquia comandada pelo padre Fernando Altimeyer Junior. Aliás, foi este mesmo, que me apresentara ao bispo Pedro. Assim que me viu, dirigiu estas mesmas palavras: “estou precisando de um padre igual a você para trabalhar em São Félix”. Acho que por causa dos meus cabelos longos e o chapéu sobre a cabeça. Nem preciso dizer que o chão me fugira dos pés. Nunca imaginava que Dom Pedro Casaldáliga fosse dirigir-me tais palavras, desejando ter os meus trabalhos de padre na sua prelazia.
A minha resposta fora imediata, sem ao menos pestanejar: “eu vou”, disse a ele a queima roupa. Ao que o mesmo retrucou: “mas eu não estou brincando”. “Nem eu”, respondi de pronto, na bucha. Alguns meses depois, aportava eu em São Félix, pronto para começar uma nova etapa na minha vida. Apesar dos meus três anos de padre, padre fresco, como os colegas costumavam dizer, compreendi que aqui, na prelazia, era onde eu deveria estar. Apaixonei de cara pela igreja que aqui encontrei. Diferente de todas as realidades por onde eu já tinha passado. E olha que sempre achava que eu fosse um padre para atuar nas grandes periferias, com a evangelização no meio urbano.
Assim que adentrei a casa de Pedro, vi que ali não era um palácio episcopal como aqueles em que já havia estado. De palácio não tinha nada. Os outros palácios, sempre muito suntuosos e imponentes, mas vazios da presença, da ternura e amorosidade do Deus dos pobres. Naqueles palácios eu experimentei um distanciamento enorme da realidade vivida pelos destinatários do Reino de Deus. E se precisasse falar com a Vossa Eminência, tinha que ser com dia e hora marcados e olhe lá. Às vezes cheguei a pensar que nem mesmo o próprio Jesus passasse por ali de vez em quando. Mas são “homens de Deus”, seguidores de Jesus. Lembro-me até de um dos questionamentos que alguém, certa feita, fez ao escritor dominicano Frei Betto: “Se eles fazem assim com o voto de pobreza, o que não devem fazer com o voto de castidade?”
A casa de Pedro já me deu mostras de qual igreja eu encontraria por aqui. Em pouco tempo também fiquei sabendo que aquele bispo simples e humilde, era um pobre que se sentia bem à vontade no meio dos pobres. O bispo da prelazia de São Félix do Araguaia, sempre morou na mesma casa. Uma casa tosca, evangelicamente simples, como as pessoas que com ele, dividiam o mesmo espaço. Uma casa que sempre foi o ponto de encontro e referência, que acolhia a todos aqueles que chegavam a São Félix. Comiam e bebiam o que todos comiam. Indígenas, peões, posseiros. Eram sempre bem vindos ao palácio episcopal de Pedro. Aquele entra e sai de gente a todo instante, deu-me as coordenadas e as boas vindas de uma igreja que sabia acolher e conviver na simplicidade. Uma igreja pobre com os pobres e para os pobres, como ele mesmo gostava de frisar.
Em pouco tempo de conversa entre nós, recebi o meu kit-sobrevivência (uma bicicleta, uma lanterna e uma rede de dormir) que me acompanhariam pelas andanças pelo sertão e pela floresta. A paz e o espírito de sossego que pairavam naquela capela humilde, nos fundos de seu palácio, foram testemunhas da minha alegria de estar ali, naquele momento histórico, que definiria os rumos da minha história pessoal de vida a partir de então. Ali eu percebi que não estava numa igreja qualquer, mas na Prelazia de São Félix do Araguaia, com os seus 150 mil km2.
Outro momento importante também foi quando entrei pela primeira vez numa aldeia indígena. Assim que pisei naquela terra, o cacique me disse: “tire as sandálias de seus pés, pois o lugar que está pisando é sagrado”. De fato, assim que pisei naquele chão sagrado, senti um arrepio tomar conta de todo o meu corpo. Dali por diante, a nossa conversa aconteceu com ele discorrendo sobre a relação que os indígenas tem com a terra, que não se tratava apenas de um espaço territorial, mas da Mãe Terra que cuida e possibilita todos os meios necessários, para que os povos originários tenham vida plena sobre ela. Foi ali que soube também que nós, não indígenas, somos muito ingratos, pois tratamos a terra como um bem de capital para produzir e gerar riquezas, chegando ao ponto de vendê-la. “Vocês vendem a mãe de vocês”, me disse finalmente aquele sábio cacique.
Alguns meses depois de minhas andanças pela prelazia, fui picado pelo mosquito transmissor da malária. Voltei a São Félix e fui todo choroso dizer ao bispo que eu estava com malária, esperando dele afago e algumas palavras de carinho. Ele simplesmente se voltou para mim e disse: “agora sim, você foi batizado no Mato Grosso”. Passados alguns meses, me curando da febre maluca em sua casa, voltei novamente à ativa, agora conhecendo um pouco mais da rotina daquele bispo franciscanamente pobre. Não no discurso, mas de verdade e de fato. Depois de dom Angélico Sândalo Bernardino, que me ajudou a ensaiar os primeiros passos no sacerdócio, Pedro deu-me mais consistência, numa caminhada de igreja a qual estou até hoje, fundamentado pela tão criticada e desconhecida Teologia da Libertação. Aqui vamos tentando dar continuidade ao legado deste místico, poeta, profeta e, nas horas vagas, nosso bispo Pedro. Sou feliz no Araguaia! Esta é a igreja com a qual sempre sonhei. Uma igreja que segue nas mesmas pegadas de Jesus, aquele de Nazaré, na Galileia.