Experiências da vida

Era o dia 27 de abril, perto das 14h. Ouvi dizer que havia um homem, supostamente bêbado, caído em frente à Igreja, vizinha à minha casa. Caminhei até a esquina para observar, porque algo muito forte me movia e me dizia que não se tratava de um bêbado e que eu precisava ir. Não pensem vocês que fosse consciente senso cristão de caridade. Quisera eu que fosse tão instintivo assim. Era algo inquietante. Curiosidade? Pode ser. Mas, não é ela também fonte de aprendizado?
Pois bem, quando cheguei à esquina e o homem caído alcançou meu campo de visão, embora eu procurasse desviar o olhar, ouvi:
– Moça! Vem aqui.
Sem pensar muito, atendi e me aproximei. Ele perguntou:
– É feio pedir?
– Não.
Respondi imediatamente.
– Então posso te pedir comida?
– Claro. Volto já.
Entrei em casa, arrumei um sanduíche, um copo com leite e voltei. Quando o vi, estava em pé, de costas para mim. Falava com a dificuldade de quem não está se sentindo bem.
– Não moça, não venha perto. Estou com vergonha.
Percebi, então, que ele havia urinado. Era um senhor de pelo menos uns 70 anos. Negro. Barba bem crescida. Vestia-se com roupas bastante surradas, mas salvo o acidente recente, não estavam tão sujas. De modo algum parecia embriagado. Era nítido, entretanto, que estava cansado e com a saúde fragilizada. Eu não estava em posição de julgá-lo, nem mesmo de atender seu pedido de que eu não me aproximasse. Falei naturalmente:
– Não precisa ter vergonha. Sente aqui na escada que eu vou alcançar a comida.
Ele sentou. Entreguei o alimento e ele disse:
– Moça, porque você me deu comida?
Não entendi a razão da pergunta, pensando que ele estava esquecido e respondi o que me pareceu óbvio:
– Porque o senhor me pediu.
Ele esboçou um sorriso, acolhendo minha incompreensão e disse serenamente:
– Não, moça. Não foi por isso. Eu peço comida pra muita gente. Mas nem todo mundo me dá.
Então ele firmou o tom da voz e perguntou enfaticamente, olhando em meus olhos:
– Porque você me deu comida?
Seu olhar me inquietou, desacomodou e me tirou a possibilidade de qualquer resposta rápida que – quem me conhece, sabe – gosto de ter. Senti meus olhos marejarem olhando os dele. Respondi sem convicção e com a voz trêmula:
– Porque eu tinha pra compartilhar.
– E porque quis compartilhar?
Seu olhar seguia fixo em meus olhos, como se observasse minha alma. Sem pensar muito, eu me apeguei ao óbvio da convicção cristã que nem sempre coloco em prática:
– Porque somos os dois filhos de Deus e se eu tenho, o senhor também merece ter.
Ele sorriu como um professor que se satisfaz orgulhoso da resposta de um aluno. Finalmente relaxou, desviou os olhos e comeu um pedaço do pão. Quando bebia um gole de leite, voltou a me olhar, agora como quem lembra de algo. Apontou para a grande cruz fixada na fachada do templo católico e disse:
– Isso aqui é uma igreja?
Respondi que sim com o sentimento ingênuo de quem anuncia uma grande novidade da qual eu era a conhecedora. Mal sabia eu que a pergunta tinha uma intenção clara para meu catedrático interlocutor. Novamente com olhar satisfeito pela resposta, continuou:
– E você acredita em Deus, moça?
Respondi de imediato que acredito, quase em modo automático de quem afirma o indiscutível. Mas aquele olhar profundo, cansado, sofrido, marcado pelo tempo, voltou a olhar profundamente o meu, ainda marejado e inquieto. Repetiu com ênfase e lentamente:
– Você acredita mesmo em Deus, moça?
– Acredito.
Respondi convicta, mas com a voz embargada. Como se não fosse suficiente ou como se esta pergunta fosse inseparável da próxima, ele prosseguiu:
– E tem medo?
– Medo de quê?
Disse eu, como quem não entende se ele queria saber se eu tinha medo de Quem eu disse crer ou se era sobre os tantos medos que tenho guardados comigo e que com olhar tão profundo, ele podia ler em minha alma. Então, permiti-me desarmar:
– Sim, tenho muitos medos.
Ele ouviu, abaixou os olhos até o prato do pão, voltou a comer com calma, como quem internaliza ou reflete sobre a resposta que ouviu. Então, replicou, surpreendendo-me:
– Não, moça. Você não tem medo. Você acha que tem. Sabe porque eu sei que não tem? Porque você está aqui falando comigo. As pessoas têm medo de mim. Sou andarilho. Caminho e ninguém sabe de onde vim nem para onde vou. Mas, você está aqui conversando comigo e está em paz. Eu sei.
Eu já não tinha palavras para responder nada. Sei que, de fato, eu estava em paz. Uma paz inquieta, mas profunda. Aqueles olhos que liam minha alma e tanto me desacomodaram, agora me transmitiam uma paz indizível, de quem sabe em que(m) acredita. Vendo que eu nada diria, acrescentou:
– Moça, Deus sabe quantas estrelas existem no teu coração! Só ele sabe! E não são poucas.
Continuamos em silêncio. Encerramos nossa conversa sem muitas delongas. Entrei em casa preocupada em buscar ajuda para que ele se abrigasse a noite. Liguei no departamento de assistência social, encaminhei as informações e, quando voltei para ver se ele foi atendido, encontrei somente os farelos do pão compartilhado nos degraus da igreja.
Não sei de onde veio, nem para onde foi, se foi atendido ou seguiu seu caminho sozinho. Só sei que naquela tarde fria, mas ensolarada, Deus resolveu me visitar! Não sei se por um velho anjo que veio do céu, ou até mesmo pelo próprio Cristo vestido de caminhante, ou – não menos ilustre – no simples andarilho guardião da grande sabedoria dos humildes. Sei que veio! E veio para me lembrar que só Ele conhece a fundo nosso coração, que é estrelado, porque foi Ele mesmo quem iluminou.