Reflexão: Liturgia do IV Domingo do Tempo Comum,
Ano C – 30/01/2022
Na Liturgia deste Domingo, IV do Tempo Comum, veremos, na 1a Leitura (Jr 4-5.17-19), que, em tempos difíceis, Deus suscita Profetas. O Profeta é a consciência crítica do povo e alguém que se fortalece pela palavra de Deus para denunciar tudo o que causa sofrimento às pessoas. O Profeta é aquele que faz a leitura divina dos acontecimentos humanos. É o responsável, para Deus, diante das pessoas e das pessoas diante de Deus. Igual Jesus Cristo, o Profeta “é o rosto humano de Deus e o rosto divino do homem” (Exortação Apostólica Ecclesia in América, 67). O Profeta é o homem da Aliança, mas também o homem da esperança, não é vidente e nem prevê catástrofes, anuncia as exigências do Evangelho, confronta-as com a realidade. É um crítico das pessoas e das sociedades. Por ter uma consciência mais profunda, ele questiona, denuncia, confronta, exige e, muitas vezes, com suas palavras, ‘choca’ os legitimadores dos sistemas vigentes, por isso nem sempre é ouvido, sofre a perseguição e a solidão. Como no tempo de Jesus, sua terra e seu meio não o compreendem. Então, só resta recorrer e até ‘reclamar’ com Deus:
“Seduzistes-me, Senhor; e eu me deixei seduzir! Dominastes-me e obtivestes o triunfo. Sou objeto de contínua zombaria… olho ao redor e vejo violência e devastação… Não mais o mencionarei e nem falarei em seu nome. Mas em meu seio havia um fogo devorador que se me encerrara nos ossos. Esgotei-me em refreá-lo, e não o consegui… Maldito o dia em que nasci! Nem abençoado seja o dia em que minha mãe me deu à luz. Maldito o homem que levou a notícia a meu pai e que o cumulou de felicidade ao dizer-lhe: Nasceu-te um menino! Por que não me matou, antes de eu sair do ventre materno?! Minha mãe teria sido meu túmulo e eu ficaria para sempre guardado em suas entranhas! Por que saí do seu seio? Para só contemplar tormentos e misérias, e na vergonha consumir meus dias?” (Jr 20, 7-18).
Mas, o Profeta, embora, algumas vezes, caia num grande sofrimento, não se deixa abater ou atingir, ele tem consciência que o chamado é de Deus: “Foi-me dirigida nestes termos a palavra do Senhor: Antes que no seio fosses formado, eu já te conhecia; antes de teu nascimento, eu já te havia consagrado, e te havia designado profeta das nações” (Jr 1, 4-5).
Ele não age por si, age em nome de Deus, é um porta-voz credenciado: “Comunica-lhes tudo o que eu te mandar dizer. Não tenha medo deles”.
Vive mergulhado em conflitos, mas não é enviado para a derrota: “Faço de ti uma fortaleza, uma coluna de ferro e muro de bronze, diante dos reis de Judá e seus chefes, diante de seus sacerdotes e de todo o povo da nação”.
Enfrenta o poder: político, econômico e religioso: “Eles farão guerra contra ti”.
Mas ele tem Deus como seu aliado: “Não prevalecerão, porque estou contigo, para defender-te”.
A vitória é do Deus da vida. “Se o Senhor é por nós, quem será contra nós. N’Ele nós somos mais que vencedores” (Rm 8, 31-39).
A partir desta leitura, também nós não tenhamos medo de dizer sim a Deus, pois é Ele quem escolhe, capacita e protege.
Na 2ª Leitura (1 Cor 12, 31-13,13), o Apóstolo Paulo acentua que a vivência do cristão deve ser focada no amor ‘ágape’, doação e não no ‘eros’, busca excessiva de satisfazer a si mesmo. No texto, fica claro que o amor não é só um sentimento, mas também são atitudes corajosas que geram boas ações e solidariedade. Onde o amor é cultuado, desaparecem os males e acontece o ‘milagre’ do bem viver. O amor é condição para o céu, isto é, o céu é a vivencia do amor.
No Evangelho (Lc 4, 21-30) vemos que as pessoas que parecem conhecer Jesus, sabem muito pouco D’ele, estão fechados para a encarnação: “Não é o filho de Maria? Do carpinteiro…”. Querem um Jesus ‘espetacular’, não aceitam que uma pessoa do meio deles seja capaz de mudar a história. Julgam pelas aparências.
Nos evangelhos, é da prática de Jesus e de suas atitudes que decorrem os critérios éticos para a ação do cristão. Jesus fez opção clara pelos excluídos do sistema: as mulheres, os estrangeiros, as prostitutas… Combate abertamente os males que estragam a vida humana: fome, doença, opressão, ignorância… Enfrenta os detentores do poder político: chama Herodes de raposa e contesta a arrogância de Pilatos. Propõe uma nova ordem, caracterizada por uma nova visão das coisas que revoluciona o sistema vigente. Apresenta uma nova concepção de poder (Mt 20, 24ss); a lei a serviço do homem (Mc 2, 27); dessacraliza o poder político (Lc 20, 25). Enfim, mostra que as relações dos homens entre si, do homem com o trabalho e com o mundo deve ser de igualdade, em que o bem comum e a dignidade da pessoa humana estejam em primeiro plano.
Talvez Jesus tenha sido rejeitado na sinagoga e no templo porque trouxe ao centro da celebração pessoas que os ‘donos da memória’ haviam esquecido, tornando-se, assim, ‘donos do esquecimento’. Jesus lembra aos donos da memória esquecimentos típicos: os pobres, a mulher, os excluídos etc.
“Em contraste com as outras religiões, o judaísmo e o cristianismo são, por excelência, religiões da memória, fundamentadas na recordação de fatos históricos que ficam rememorados ao longo dos tempos. O Cristianismo herdou do judaísmo seu caráter memorial só que ele centrou sua memória na encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Libertador não só do Egito – como fora Moisés, mas de todas as formas de dominação.
O sistema religioso baseado na proliferação de sinagogas numa vasta diáspora apresentava neste ponto vantagens diante do sistema centralizado em torno do templo de Jerusalém, por arquivos e escritos, no qual havia o perigo de os “donos da memória” se tornarem “donos do esquecimento”, isto é, no qual os compromissos dos detentores do poder do templo com os donos do poder na sociedade como um todo podiam comprometer a fidelidade da transmissão de uma memória tão perigosa como era a da libertação da escravidão e do poderio de uma potência estrangeira. Os sacerdotes do templo podiam se lembrar de alguma coisa, mas se esquecerem de muitas outras.
Jesus reagiu contra esquecimentos típicos por parte dos detentores do poder religioso: os silêncios em torno da mulher, do samaritano, do centurião, da prostituta, do estrangeiro, do publicano, dos pobres e marginalizados. Jesus declarou em alta voz que eles existem, que estão por aí e que vivemos no meio deles. Os esquecidos na memória social manipulada pelo templo foram os lembrados por Jesus. Estas lembranças são lidas e rememoradas pelos apóstolos nos serviços dominicais das comunidades e recebem, no segundo século, o nome de evangelhos.” (Cf. HOORNAERT, Eduardo. A Memória do Povo Cristão. Coleção Teologia e Libertação, Vozes: Petrópolis, 1986, p. 16-25).
Para ser coerente com a mensagem profética e libertadora do Evangelho, a Igreja não pode deixar de denunciar situações e estruturas iníquas. Deve colocar-se prioritariamente ao lado dos pobres, oprimidos, e participar, dentro de suas condições específicas, da construção de uma nova sociedade.
Como Jesus enfrenta a falta de fé dos seus conterrâneos que reagem furiosos? “Todos na sinagoga ficaram furiosos”. Jesus não perde tempo com o descrédito imputado a Ele: “Passando pelo meio deles, continuou o seu caminho”. Aqui fica a questão: Era Jesus que tinha que se reduzir ao tamanho das pequenas ‘cabecinhas’ deles, ou eles que deveriam deixar de ser ‘analfabetos’ quanto à Doutrina Social e se aprofundar mais, conhecer mais o projeto do Reino e crescer no compromisso de uma fé cidadã?
O Papa São João Paulo II, em sua Mensagem para a Quaresma de 1995, dizia: “A Praga do analfabetismo contribui para manter as condições de miséria. Para ele a maior crise não é econômica, a crise é ética, é de ideias, de valores, de conhecimento. A fome de instrução não é menos deprimente que a fome de alimentos: um analfabeto é um espírito subalimentado”.
É urgente que sintamos o compromisso de construirmos uma ‘fé cidadã’. Os cristãos jamais podem abdicar da sua missão de influenciar a vida social e pública com seus valores humanos, éticos e evangélicos, sempre em vista da sociedade ideal e justa.
Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.
Padre Leomar Antonio Montagna é presbítero da Arquidiocese de Maringá, Paraná. Doutorando em Teologia e mestrado em Filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Câmpus de Curitiba. Foi professor de Teologia na Faculdade Missioneira do Paraná – FAMIPAR – Cascavel, do Curso de Filosofia da PUCPR – Câmpus Maringá. Atualmente é Pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças em Sarandi PR.