Fé martirial

 

Quinta feira da segunda semana da páscoa. Felizmente, o calor insuportável dos dias anteriores deu lugar a uma manhã fresquinha. Choveu bastante durante a noite, possibilitando-nos uma noite bem dormida. Até os pássaros estavam mais felizes nesta manhã, fazendo uma verdadeira festa, apesar de ter a sua plumagem toda molhada. Eles, melhor do que qualquer um de nós sabem agradecer ao Criador por cada manhã como esta. Por isso a cantoria, alegrando a nossa manhã.

Aproveitei do ensejo e rezei em ação de graças ao Criador por ter-nos dado mais um dia de vida. Não é daqueles dias que gostaríamos de estar vivendo, mas ao menos estamos vivos. Quantos por aí não perderam as suas vidas? Quantas famílias não estão enlutadas, chorando a partida dos seus? Quantos ainda sofrem com alguém da família internado numa unidade hospitalar? Quantos ainda esperam por um vaga de UTI? Quantos de nós esperamos arduamente pela vacina que demora pra chegar?

Me detive hoje sobre o texto da primeira leitura, uma das narrativas dos Atos dos Apóstolo (At 5,27-33), nos dando conta da perseguição sofrida pelos primeiros seguidores de Jesus. Ou seja, a aristocracia sacerdotal daquele tempo não se satisfez em perseguir a Jesus de Nazaré. Esta perseguição se estendeu sobre aquelas pessoas, homens e mulheres que testemunhavam, através da sua fé/vida, a presença do Cristo vivo no meio delas. O Crucificado agora era o Ressuscitado que tais pessoas davam testemunho, continuando o projeto messiânico de Jesus.

Muitos seguidores e seguidoras de Jesus, em todos os tempos, deram a sua vida pelo Evangelho e pelo Reino de Deus. O martírio de Jesus não foi em vão. Ele é considerado o Mártir dos mártires. Na realidade, o cristianismo só vai conseguir vencer o todo poderoso Império Romano, somente depois que milhares de vidas foram tombadas, de mártires que derramaram o seu sangue. Vidas pela vida! Vidas pelo Reino! Aliás, a palavra mártir vem do grego martys, martyros,”que significa testemunha. Ou seja, através da vivência de uma fé comprometida e engajada, testemunham o Cristo vivo ressuscitado, colocando em risco a própria vida.

A fé exige compromisso, dedicação, entrega. Não basta apenas acreditar, como muitos fazem. Acham que viver a sua fé pressupõe apenas a participação nos sacramentos da igreja. É preciso ir mais além, e comprometer-se com o Projeto de Deus revelado por Jesus: Reino de Justiça, paz, fraternidade e igualdade entre todos. Também não basta ter fé em Jesus. É preciso ter a mesma fé de Jesus, dando a própria vida para que os outros, sobretudo os mais pobres, tenham vida e em plenitude. Antes usavamos o verbo “imitar” Jesus. Hoje, esta perspectiva já não nos satisfaz, uma vez que somos desafiados a seguir nas mesmas pegadas do Nazareno. Ser como Ele foi.

Se a nossa opção for pelo seguimento de Jesus, nossa vida corre sérios riscos. O martírio é constitutivo da fé cristã e da nossa caminhada de Igreja, onde quer que estejamos. Não existe meio termo. Uma igreja que não é perseguida, precisa rever onde foi que ela esqueceu o seu profetismo. Como no tempo dos apóstolos, as autoridades se reuniram para decidir sobre a sorte deles. Mas mesmo assim, eles continuam ensinando o povo. Apesar de serem proibidos de ao menos falar no nome de Jesus (At. 4,18), a teimosia falou mais alto e aqueles seguidores e seguidoras do Galileu continuaram ensinando em nome de Jesus sem medo de serem felizes.

Os sacramentos são importantíssimos para a experiência de fé. Entretanto, uma igreja que prima-se tão somente pela centralidade destes, perde a oportunidade de vivenciar a característica fundante do seguimento do Mestre: dar a vida se preciso for para que o outro tenha vida. Neste sentido, como mártire profeta desta igreja de São Feliz do Araguaia, Pedro sempre nos dizia que “a graça maior que Deus pode conceder a alguém que segue os passos de Jesus é o martírio”. Sobretudo numa sociedade tão desigual como a nossa. “Se a Igreja não exerce neste contexto o seu profetismo, ela deixa de ser a igreja de Jesus de Nazaré, completava nosso pastor.

Somos desafiados a viver a nossa fé até as ultimas consequências. Como Jesus que deu a sua vida, também nós somos provocados a lutar para que a vida seja plena. Se a nossa sociedade tão contraditória ainda subsiste, é porque não estamos vivendo com intensidade a nossa experiência de fé e acabamos contribuindo para que o que aí está permaneça desta forma. Neste sentido, os grandes e poderosos agradecem, pois continuarão oprimindo os pequenos. Talvez seja este o momento de fazer nossas as palavras de Santo Oscar Romero: “Dar a vida não significa apenas sermos mortos; dar a vida, ter espírito de martírio, é dar no dever, no silencio, na oração, no cumprimento honesto das obrigações; é dar a vida pouco a pouco, no silencio da vida cotidiana, como a dá a mãe que, sem medo, com a simplicidade do martírio materno, dá à luz, faz nascer e acode com afeto o seu filho”.