Mais uma manhã fria pelas bandas de cá. O mês de julho está caminhando para o seu ocaso, mas as manhãs frias ainda permanecem entre nós. Mesmo com este frio nos rondando, a água do Araguaia permanece morna. Razão pela qual nos convida para um irresistível mergulho sob suas águas, na belíssima praia que se formou este ano bem em frente à cidade de São Félix. Certamente, mais tarde, vou sucumbir diante de tal tentação. Um caso de amor com este rio. Araguaia que me faz feliz e inunda meu espirito sempre de boas recordações!
Dia 27 de julho. Se ainda estivesse por aqui, completaria nesta data, 42 anos de idade. Mulher, negra, mãe, filha, irmã, esposa e filha da favela da Maré. 13 Tiros atingiram o veículo em que estava, retirando também a vida de seu motorista Anderson Pedro Gomes. Marielle Francisco da Silva (1979-2018), mais conhecida como Marielle Franco, foi uma socióloga e política brasileira. Filiada ao Partido Socialismo e Liberdade, (PSOL), eleita vereadora do Rio de Janeiro para o mandato de 2017-2020, com a quinta maior votação. A pergunta que todos fazemos é uma só: quem mandou matar Marielle Franco? O mandante, traz em suas mãos o sangue desta grande mulher e está, certamente, no meio de nós.
Hoje quero falar de algo espinhoso. Um assunto do qual as pessoas geralmente não gostam muito de discorrer sobre ele. Estou me referindo à história e a memória. Ambas caminham lado a lado, completando-se no processo de fazer acontecer a nossa trajetória ao longo da vida. Memória que se faz na história. História que ganha vida pela memória, muito embora sejamos conhecidos como um povo de memória curta. E quem tem curta a memória, está fadado a cometer os mesmos erros grotescos do passado. O passado não lhes ilumina o presente para que assim possam viver dias vindouros no futuro.
A história se faz com a memória que vamos cultivando dos fatos históricos do passado. Na América Latina, por exemplo, temos uma rica experiencia de caminhada de Igreja. Tal caminhada jamais poderá ser esquecida. Tudo teve o seu desabrochar no ano de 1968, com a Conferência Episcopal de Medellín, na Colômbia. A partir deste momento do “Kairós”, palavra de origem grega, que significa “momento certo” ou “oportuno”, que a partir desta conferência, surgiu entre nós, um novo modo de ser Igreja que se expressou nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Uma Igreja militante que estava presente nos círculos bíblicos, nas pastorais sociais, buscando o Reino de Deus na caminhada da libertação. Nosso bispo Pedro, considerava Medellín como um grande momento histórico, afirmando que: “Para a América Latina, Medellín foi um verdadeiro Pentecostes”. Sim, porque em Medellín, o Concilio Vaticano II (1962-1065) veio até nós, soprando o forte o vento do Espirito Santo, traduzindo em letras miúdas, o grande avanço que foi para toda a Igreja a partir de então.
Medellín mostrou o caminho de uma igreja marginal, que caminhava pelos estreitos subterrâneos da história oficial. Uma igreja martirial, construindo a história a partir da luta e da mística daqueles e daquela que deram às suas vidas pelas causas do Reino. Que riqueza de experiência, o modo de ser igreja expressado pelas CEBs! Através delas, a Teologia da Libertação (TL), deixou de ser um discurso meramente acadêmico, para ganhar o chão destas comunidades, sendo apropriada pelos descartáveis do continente. Uma teologia que ajudou os pobres a entender que a exploração, não era fruto do desejo de Deus, mas de uma estrutura diabólica de sociedade, que relegava os pequenos, os descartáveis a seres de segunda categoria. Daí decorre a ira e a resistência que a elite burguesa tem quanto à Teologia da libertação, quando afirmam que a Igreja está fazendo política e não “cuidando das almas.”
História e memoria caminhando juntas e inseparáveis. Quando perdemos a memória desta caminhada de Igreja, deixamos de viver este momento rico de uma Igreja que está muito próxima dos anseios de Jesus, no anúncio do Reino. Uma Igreja como as primeiras comunidades cristãs, no seguimento de Jesus de Nazaré. É provável que grande parte dos membros das comunidades de hoje, sequer leram o documento de Medellín. História e memória que não podem ser esquecidas. Certamente alguns dos padres mais jovens também não se deram ao trabalho. Talvez, ao invés de se preocuparem com as vestimentas clericais vultosas ou a necessidade das constantes fotos nas redes sociais, se debruçassem sobre os documentos das conferências episcopais, tivéssemos uma igreja mais voltada para aquilo que Jesus tanto insistia na sua prédica e prática. Uma Igreja mais afeita às angústias da pós-pandemia. Ou nos atentamos para a história e a memória ou senão caímos no risco para o qual nos alerta o escritor norte americano Dan Brown: “Viver num mundo sem tomar consciência do significado do mundo é como vagar por uma imensa biblioteca sem tocar os livros.”