Certa feita, perguntaram ao bispo e arcebispo emérito de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara, quantas línguas ele falava, já que ele era considerado um homem do mundo. De prontidão, aquele pequenino homem na estatura respondeu: uma, o “cearenso”! Este era D. Helder, um homem valoroso para a Igreja, grande defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. Tinha um compromisso com uma Igreja simples, voltada para os pobres, e a não-violência. Sua importância era tamanha que foi o brasileiro que, por mais vezes foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
Costumo dizer que sou um ser pra La de privilegiado. Nasci na hora certa, no período histórico certo e na família certa. A primeira vez que cheguei em casa com algo que não era meu, a dona Arlinda, minha mãe, me fez passar a maior vergonha do mundo, ao fazer-me voltar e deixar aonde eu havia apanhado o objeto. E olha que ela foi dura comigo. Eu já sabia, quando ela me chamava de Francisquinho, era sinal de peia na certa.
A cada ano que passava na minha vida eu ia vivenciando estes privilégios. Na formação para o sacerdócio não foi diferente. Na filosofia, por exemplo, estávamos no auge da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano realizada em Puebla de los Angeles/México, no ano de 1979. Influenciados pelas discussões que giravam em torno deste documento, um grupo de seminaristas, fomos morar numa periferia de Campinas, recebendo o singelo apelido de “Pueblinha.”
Os privilégios não paravam por aí. Tínhamos um Papa que era referência mundial como liderança católica, o saudoso Papa Paulo VI. O mesmo que, durante a ditadura e diante da perseguição dos militares ao bispo Pedro, na iminência de sua expulsão do Brasil, posicionou-se veementemente contra, afirmando categoricamente: “Se mexerem com D. Pedro Casaldáliga, estarão mexendo comigo e a Igreja de Roma.”
Eu vivenciava tudo isso no meu processo formativo. O regime era de exceção, e nós vivíamos a flor da pele a crueldade do sistema. Foi assim também quando iniciei os estudos da teologia em São Paulo. Eu gostava de viver perigosamente e fui morar numa favela na região do ABC paulista, desejoso que estava de refletir a teologia, fundamentada em PUEBLA. Foram quatro anos intensos de muita reflexão, tendo os pobres daquela periferia, como protagonistas desta teologia. A minha caminhada formativa sempre foi “marginal”.
Ordenado sacerdote, parti para outro desafio, que foi caminhar com os moradores de um conjunto habitacional enorme, na zona Lesta de São Paulo. A COHAB Tiradentes, tinha uma população estimada de 180 mil pessoas à época. Foi a partir de lá que conheci o outro homem de fé/pé na caminhada que vai mudar radicalmente a minha vida. Assim que recebi o convite do bispo Pedro para ser um agente de pastoral na prelazia de São Félix do Araguaia, não pensei duas vezes, afinal, não é toda hora que se recebe um convite vindo de D. Pedro Casaldáliga.
Estes homens de fé sempre foram inspiração para todos aqueles e aquelas de minha época. A minha geração cresceu aprendendo a admirar, D. Hélder, D. Fragoso, D. Paulo Evaristo Arns, D. Luciano Mendes de Almeida, D. Waldir Pires, D. Claúdio Hummes (que teve a incumbência de me ordenar), dentre tantos outros.
A simplicidade e a humildade destas pessoas, nas suas mais variadas experiências de vida/fé, sempre nos marcou e serviu como parâmetro para a nossa caminhada de igreja e de pessoas de luta. Pedro, por exemplo, andava de ônibus, para cima e para baixo, porque na compreensão dele, o povo também andava de ônibus e assim esta seria a melhor forma de encontrar com o povo. As pessoas ficavam felizes da vida, quando encontrava o padre Pedro no ônibus. Esta é Igreja Povo de Deus, cuja fé é encarnada na vida do povo. Um dia, quem sabe, eu vou ter uma fé assim também.