Invisibilidade intencional

Iniciamos hoje uma quarta feira pós feriado. Um feriado prolongado. Para alguns de nós um sentimento de ressaca moral paira no ar, de tanto que se inebriaram. O feriado da independência, em que muitos negacionistas se portaram de forma “independente” e não usando suas máscaras, sem levar em consideração que estamos ainda em tempos de pandemia. Lembrando que usar máscaras é um ato de amor! Não somente uma atitude de respeito ao outro, mas a si mesmo. Quem não respeita a si, dificilmente saberá respeitar o outro que convive consigo.

Com o coração indignado, rezei nesta manhã na companhia de nosso bispo Pedro. Só assim mesmo para encontrar alento para o meu coração acabrunhado em meio a tanta contradição. Um misto de indignação e estranhamento, me fiz presente ao seu túmulo, tentando encontrar respostas para muitas de minhas perguntas. Ali rezando, veio-me à mente um de seus escritos: “No mundo – na sociedade humana-, poderia explicitar melhor Jesus, passareis muitos apertos; e na Igreja – que deveria ser minha comunidade fraterna – os passareis também”. (Jesus acrescentaria, consequente sempre, “mas não temais, que eu venci o mundo e ‘essa’ Igreja”?). O desafio de ser cristão e enxergar as incongruências da sociedade é para poucos.

O Filósofo e astrônomo Tales de Mileto, que viveu na Grécia Antiga, considerado como um dos homens mais sábios do mundo grego, afirmava que a coisa mais difícil para uma pessoa é a de conhecer a si mesma. Segundo este filósofo, nós não nos conhecemos suficientemente. Ate achamos que nos conhecemos, mas não tomamos posse daquilo de quem somos nós. Se não nos conhecemos, também não conhecemos aqueles e aquelas que convivem conosco no cotidiano de nossas vidas. De tanto que não nos conhecemos, que nos surpreendemos com algumas de nossas atitudes, frente a alguns contextos que vivenciamos. A proposição deste filósofo fica pendente no ar: “Conheça a te mesmo!”

Conhecer a si mesmo e conhecer o outro que caminha conosco, torna-se o maior dos desafios. Assim, de surpresa em surpresa, vamos trilhando o passo a passo de nossa história de vida. Tanto que nos últimos tempos temos visto o despertar do interior das pessoas, verdadeiros “monstros” que dormitavam dentro delas e que não tínhamos conhecimento de que ali residiam. Seres estes caracterizados pela insígnia do ódio, do preconceito, da indiferença cega e da alienação total, que mal conseguem enxergar para além do aparente. Não enxergam e nem querem enxergar o obvio que transparece em forma de realidade nua e crua. Seres alienados e querem continuar sendo, mesmo pagando a conta que não fecha.

Nestas duas últimas duas semanas, por exemplo, estamos vivendo uma situação completamente atípica. Na Capital Federal, estão reunidas centenas de nações indígenas, numa luta inadiável para fazer valer os seus direitos constitucionais de permanecerem sobre os territórios que tradicionalmente ocupam, mesmo antes da chegada do colonizador. Uma luta de força e resistência que já dura 521 anos de sua história resiliente. Entretanto, é como se eles e elas não existissem, ocupando aquele espaço geográfico, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que, nenhuma vírgula é noticiada na grande mídia televisiva, dominada que é pelas forças dos ruralistas, da bancada da bala e dos evangélicos que se encastelaram no poder e tem seus interesses confessos sobre os territórios dos povos originários. Inevitável não recorrer a um dos versos de nosso poeta/profeta do Araguaia: “Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!” (Pedro Casaldáliga)

VÍDEO: Mulheres indígenas cantam “quero ver o Bolsonaro amarrado no cipó”

Vivemos numa sociedade de invisíveis. O padre Júlio Lancellotti, não se cansa de dizer que as pessoas em situação de rua, não são vistas como seres humanos. Invisibilidade intencional no intuito de não mostrar aquilo que se é na realidade. A luta dos povos indígenas não interessa ser visibilizada em sua amplitude. Quanto mais alienado um povo permanece, mais fácil de ser dominado pela ideologia dos grandes. Visibilidade que também não se faz presente nas mídias ditas cristãs. Nenhuma palavra também fora dita pelos celebrantes nas mídias católicas, acerca dos direitos indígenas violados sistematicamente pelos interesses de latifundiários. Demonstração clara e inequívoca de uma omissão pecaminosa, de fazer inveja aos fariseus do tempo de Jesus. Invisibilidade intencional, ainda que estivéssemos no clima do 27º Grito dos Excluídos onde o tema era “Vida em primeiro lugar!” Como Igreja, somos desafiados a enfrentar os mesmos desafios de Jesus de Nazaré. Uma Igreja viva e atuante na história de libertação dos pobres e sofredores. Até porque “A igreja que vai impactar o mundo não é a que você está indo, é a que você está sendo.” (Autor desconhecido)

 

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.