Segunda feira da décima segunda semana do tempo comum. E assim vamos nós em direção ao horizonte de nossos sonhos. Vivendo um dia de cada vez, olhando para o passado, vivenciando integralmente o presente na perspectiva do futuro. Ainda não cicatrizou em nossos corações, a chaga da tragédia em solo amazônico. Nossa missão é não deixar cair no esquecimento. A memória viva de Dom e Bruno permanecem em nós. Agora não nos bata saber quem matou a vida, mas quem mandou os órgãos de segurança se apressarem na conclusão das investigações, numa tentativa de isenção de “culpa” dos verdadeiros assassinos.
A memória é que sustenta a nossa caminhada de fé. Nossa memória é curtíssima. Um povo sem memória é um povo sem história. Está fadado a repetir os mesmos erros do passado. Os exemplos são muitos. Somos a descendência de um período colonial perverso, que sustenta ainda hoje os valores da “Casa Grande” e a escravização moderna das “senzalas”. O machismo, o racismo estrutural, a aversão ao pobre (aporofobia), convivem conosco e alguns de nós os sustentamos como valores intrínsecos à nossa personalidade. Memória e história caminham de mãos dadas. Ninguém jamais conseguirá apagar a memória da história. Até podemos ignorá-la, mas ela estará sempre ali, fustigando a nossa consciência, às vezes pesada.
Dom e Bruno estão vivos, assim como deve estar viva a nossa memória. É esta mesma memória que não nos deixará calados diante da barbárie. Do fundo do nosso peito sai o grito ensurdecedor de quem, não se cala diante da morte matada, vida ceifada, planejada. Uma voz que não se cala como o clamor do pobre expressado pela boca do salmista: “Dos fundos abismos, eu clamo por Ti. Vem logo Senhor, meu grito ouvir! Ouvi, Senhor, a minha voz!” (Sl 130/129). A noite escura das trevas vai passar e a justiça chegará. A floresta inteira clama por justiça e os ancestrais estão atentos. Como dizia o filosofo Cícero (106 a.C.-43 a.C.): “A história é testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, anunciadora dos tempos antigos”.
Somos filhos da esperança e da família da utopia do Reino. O Deus da vida caminha conosco na história. O crucificado é o mesmo Ressuscitado nas nossas lutas. Caminhando com Ele, acreditamos na possibilidade de fazer a história acontecer pelas nossas mãos. A justiça e a paz se abraçando em festa juvenil. Com Ele, faremos uma história diferente, onde “a verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus. O amor e a fidelidade se encontrarão; a justiça e a paz se abraçarão”. (Sl 85,10-11) A semente da esperança está germinando em nossas veias e nas nossas lutas por outro mundo possível para todos.
Os tempos são difíceis. Tenho rezado muito para que o meu horizonte não se feche sem perspectivas. O Deus da esperança faz desabrochar em mim um olhar panorâmico frente às forças da morte. Nunca imaginei que o meu “ser com os indígenas” fosse uma simples “aventura”. “Malvisto”, eu sei que sou! São trinta anos pisando o chão sagrado dos territórios indígenas, bebendo de sua cultura ancestral e dos saberes milenares. Orientado por Pedro, que me disse quando pisei pela vez primeira numa aldeia indígena: “você não vai estar lá como padre, mas como um com eles nas suas lutas. Quando muito vai ‘desevangelizar’”. Levei esta fala tão a sério, que não consegui mais sair. Sei quem sou e sou feliz como sou. O sangue indígena corre nas minhas artérias e no meu coração sonhador.
Culpados foram Dom e Bruno. Quem mandou fazer aventuras na floresta? Culpado foi Jesus. Quem mandou andar pela periferia da Galileia, se metendo com aquele tipo de pessoas? Acolhendo crianças, pobres, prostitutas, pagãos, subvertendo a ordem estabelecida e ainda oferecendo àquela “gentália” a morada no Reino: “…delas é o Reino dos Céus”. (Mt 19,14) Procurou, achou! Foi parar numa cruz reservada aos malfeitores, fora da lei. Poderia muito bem ter estado em oração, “adorando o Santíssimo” no Templo de Jerusalém; participando do “Cerco de Jericó”, bajulando e massageando o ego da elite burguesa de Jerusalém. Bem feito!
O jeito revolucionário de ser de Jesus só poderia ter terminado na cruz. Todavia, a cruz foi a consequência de sua fidelidade e de não ter abandonado o Projeto Salvador de Deus, através da encarnação do Verbo. Se a arma da cruz matou Jesus de Nazaré, a vitória de Deus triunfou, pois o crucificado foi descido dela, se tronando o Cristo vivo Ressuscitado que caminha pelas veredas de nossas vidas. Mataram a vida de Dom e de Bruno. Como Jesus ressuscitado, ambos vivem nas nossas lutas, já que o sangue de seu martírio não foi derramado em vão, mas fertiliza a nossa caminhada, não nos deixando desistir de esperançar.
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.