(Chico Machado)
Sexta feira da Primeira Semana da Quaresma. Sextou também na Quaresma. A primeira do mês de março. Uma sexta banhada pelas fortes chuvas que trouxeram o dia de hoje no Araguaia. São Pedro amanheceu com cara de poucos amigos por aqui. São “as águas de março fechando o verão”? Difícil saber, com tantas mudanças climáticas em decorrência da ação humana na destruição ambiental provocada pelo “bicho homem”. Até o outono, muita água passará por debaixo da ponte. Poetizando com Fernando Pessoa poderíamos dizer: “Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era e transforme-se em quem é. Seja bem-vindo, março!”
Com o vento anunciando o amanhecer, tratei de deixar o berço mais cedo. Rezei nesta manhã sem poder dar um passo sequer para além do meu quintal. O vento fazia com que os pingos da chuva bailassem ao cair. Meu quintal, silenciosamente absurdo sem um visitante qualquer. Dialoguei com o Deus invisível, vendo-o manifestar-se nesta obra da natureza. Deus que se faz presente em tudo e a todo instante, mesmo que a nossa insensatez não consiga perceber as suas formas de manifestar-se. Deus cuidando de tudo e de todos.
Justiça seja feita! Este é o clamor uníssono de parte da sociedade, diante da tragédia vivida por algumas famílias oriundas da Bahia na colheita da uva no Sul do país. “Aquele pessoal lá de cima” sendo escravizado em pleno século XXI, sub-empregando a sua mão de obra na fabricação dos vinhos que serão servidos nas mesas brasileiras, inclusive nos “santos” altares religiosas, já que o vinho “Canônico” é usado na transubstanciação, os seja, na mudança da substância do vinho na substância do Sangue de Jesus Cristo no ato da consagração.
Justiça não quer dizer vingança, ou algo do gênero. Justiça, uma palavra que etimologicamente devida do latim “justitia” como uma “particularidade daquilo que é justo”, “correto”. Um conceito ligeiramente abstrato que se refere a um estado de interação social ideal onde há um equilíbrio entre todos, num formato de imparcialidade. Justiça é a medida certa da vida que se constitui na igualdade entre todos na preservação dos direitos em sua forma legal.
Justiça que fez parte do itinerário formativo de Jesus quando do desenvolvimento de sua vida pública na execução de seu projeto messiânico: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”. (Mt 5,20) O parâmetro comparativo para Jesus no seu conceito de justiça era aquela justiça praticada pelos mestres da Lei e os escribas. Justiça de aparência; do faz de conta. Justiça da hipocrisia. Os mestres da Lei e escribas se especializaram em cumprir a Lei que se baseava em 248 mandamentos e 365 proibições, numa tentativa de obedecer a todos eles.
Para Jesus, a lei não deve ser observada simplesmente por ser lei, mas por aquilo que ela realiza de justiça. A lei precisa ser antes de tudo, justa. Cumprir a lei fielmente não significa subdividi-la em observâncias minuciosas, criando uma hipocrisia burocratizante; significa, isto sim, buscar nela inspiração para a prática da justiça e da misericórdia, a fim de que a pessoa tenha vida e relações mais fraternas. O principio fundamental para a prática da lei é a realização da justiça. Justiça feita com misericórdia, fundamentada no amor incondicional.
Praticar a justiça é ser justo. Ser justo é basear a sua vida pelos critérios da justiça feita com amor. “O justo viverá pela fé”. (Hb 10,38) Ser justo é ter fé e fazer uso do amor e da misericórdia. Desde o Antigo Testamento já se dizia que “Quem não é correto vai morrer, enquanto o justo viverá por sua fidelidade”. (Hb 2,4) O modelo de homem justo para os cristãos é a pessoa do carpinteiro José: “sendo um homem justo e não querendo expô-la à desonra pública, planejou deixá-la sem que ninguém soubesse a razão”, (Mt 1,19).
O cristão é a pessoa que constrói os seus valores e princípios fundamentados no amor. Amor que se reveste da misericórdia na prática da justiça. Misericórdia e justiça, as duas faces do Messias, Verbo encarnado. A justiça e a misericórdia são duas vertentes do projeto de Deus revelado por Jesus: o amor de Deus pela humanidade, um amor criador e que vai até às últimas consequências pelos filhos seus. “Deus é amor” (1Jo 4,8). O centro da vida em Jesus é a prática da justiça com amor. Esse amor testemunha concreta e visivelmente o conhecimento e a união que temos com Deus e com o seu Filho. Ter fé em Jesus é a teoria de uma prática que se expressa na prática da justiça com amor concreto aos irmãos e irmãs, a quem Deus muito ama. “Sinônimo de amor é amar”, como canta Zé Ramalho em sua canção.
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.