Marcha das mulheres

Amanheceu mais uma quinta feira. Um clima mais ameno aqui pelas bandas do Araguaia, já que a fumaça deu uma trégua e o céu está mais azul. O ar mais respirável que nos dias anteriores. Rezei hoje na companhia de uma centena de papagaios e periquitos. Seu ruidoso mantra se faz ouvir desde muito cedo, dando conta das primeiras mangas, disputando palmo a palmo a irreverente e centenária mangueira de meu quintal. Reinavam absolutos, tagarelando seus dialetos. Queria ser um Francisco de Assis para entender tanto que falavam. Dizem os escritores da época que ele falava a língua dos animais, sobretudo de um lobo que o acompanhava. Bons tempos estes do pobre de Assis em que os outros seres eram respeitados na nossa Casa Comum.

Acordei nesta manhã recebendo um dos vídeos enviado por uma das lideranças Xavante que se encontra em Brasília. Cada dia recebo notícias afirmativas de um daqueles que lá estão. Segundo eles, o moral da turma está nas alturas. Nunca se sentiram tão articulados na defesa de seus direitos ameaçados. Uma mobilização de fazer inveja a nós pobres mortais não indígenas. São várias nações presentes ali, cientes de que não podem permitir que seus territórios sejam ainda mais devassados pela avidez e ganância inescrupulosa dos ruralistas. “Vamos pra cima deles”, me garantiu um de meus amigos professores presentes ali.

Em Brasília encontram-se também as valentes e guerreiras mulheres indígenas. Se dirigiram para a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que teve o seu início no dia 7 de setembro e vai até o dia 12. Estima-se que lá estejam presentes cerca de 4 mil mulheres, das mais variadas etnias do Brasil. Daqui do Araguaia também há uma comitiva de mulheres que engrossam a marcha, dentre elas, a cacique e professora Xavante, Carolina Riwaptu. A temática desta segunda marcha é bastante sugestiva, “Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra.” Este importante evento faz parte da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). As mulheres engrossando a luta dos povos indígenas contra o “marco da vergonha” que querem fazer descer goela abaixo dos povos originários como “Marco Temporal”.

Reflorestar as mentes é o nosso maior desafio em meio a esta insanidade que passou a tomar conta desta nossa grande nação. Muitas mentes devastadas entre nós. Estamos caminhando a passos largos rumo ao precipício, mas muitas destas mentes “desmatadas”, não enxergam ou não querem enxergar. O pior de todos os cegos é aquele que não quer ver, ouvir e nem acreditar. Cegos estes que tentaram invadir, a força, o acampamento das mulheres indígenas na madrugada de segunda para terça feira (07). Mal sabem estes, quem são estas guerreiras mulheres indígenas. As mulheres Xavante, por exemplo, praticam o ritual da corrida de tora (Uiwede). Correm com uma tora de buriti sobre os ombros que chega a pesar 70 quilos. A dos homens chega a 100 quilos. Um povo guerreiro que pratica os seus rituais, esculpindo os seus corpos para os embates da luta.

As mulheres indígenas são os esteios das comunidades indígenas. Várias das etnias ainda mantem viva a língua materna graças às mulheres. São elas que passam grande parte do dia com as crianças, falando na própria língua, transmitindo todos os conhecimentos da vida para as crianças. Para a forma de organização do povo Xavante, são elas que executam a tarefa da colheita dos frutos da terra. Tarefa específica das mulheres, pois na compreensão deles, elas colhem os frutos porque são portadoras e geradoras de vida (útero materno). Assim, o fruto colhido por elas, são mais inteiros e saborosos. Os homens (aibâ), preparam a terra e semeiam, mas são elas (pi’õ) que colhem os frutos da terra. Elas não estão somente reflorestando as mentes, mas também o território de Marãiwatsédé. Graças a atuação delas na “Rede de Sementes do Xingu e Araguaia AXA”, estão ajudando no processo de reflorestamento de seu território com árvores nativas.
Parafraseando nosso grande escritor Euclides da Cunha, poderíamos dizer que “o nosso indígena é antes de tudo um forte”. Desde que o colonizador pôs os seus pés sobre o seu território, começava a sua luta desigual contra estes invasores. Luta esta que ainda permanece nos dias atuais, pois os seus territórios figuram como o objeto de desejo de grandes latifundiários que, em nome do progresso, querem transformar as suas terras em canteiros de soja, capim para o rebanho bovino, contaminando os seus rios com o mercúrio. Tudo isto nos faz lembrar do poeta de Recife Manuel Bandeira (1886-1968) que já nos dizia: “No dia que Portugal descobriu o Brasil, o Brasil perdeu a felicidade”. (M. Bandeira, 1936)

“Damos-te graças, Senhor! Porque fomos conquistados, mas não vencidos. Porque tiraram nossos rios, Mas somos os rios e as veias de nossos povos; Porque nos esmagaram, mas não acabaram conosco; Porque nos espremem como fruta Mas continuamos a ser poços de água viva; Porque continuam a nos perseguir, Porém nunca nos apanham; Porque nos arrancam os olhos, Mas nós já enxergamos o nosso dia; Porque nos esquartejam como bois, Mas nós permanecemos inteiros; Porque nos matam, mas não nos destoem; Porque nos enterram vivos Nós, porém, Ressuscitamos!”
Ação de graças indígena – Autor anônimo (Guatemala)

 


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.