Memória pascal dele

Os dias são de intenso calor. Muita fumaça e pouca chuva, aqui pelas bandas do Araguaia. Já era para acontecer as primeiras chuvas. O pessoal daqui costuma dizer que só existem duas estações: inverno e verão. Inverno é quando as chuvas vêm (outubro a abril); e verão é quando o astro rei reina absoluto, provocando ondas de intenso calor. Na verdade, já nos habituamos e nos adequamos a esta realidade climática.

O pantanal ainda segue com os seus focos de incêndio. Ao contrário do que possam pensar por aí, não são rochas aquecidas pelo sol e detectadas pelos satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (IMPE). É o fogo que segue destruindo tudo, apesar de ser negado pelos “iluminados” do governo brasileiro. As reportagens mais sérias dão conta de que a temperatura local é de 52 graus, com sensação térmica maior ainda. Estamos perdendo parte do bioma do pantanal, infelizmente.

Ontem celebramos dois meses da memória pascal de nosso bispo Pedro. Seu túmulo segue sendo visitado pelas pessoas mais simples. Nenhum engravatado. Apenas a gente simples do local, que ainda sentem a dor da perda deste grande homem. Aproveitei para conversar com algumas destas pessoas, para sentir com elas, este momento de dor. Uma delas comentou: “padre Chico, nunca mais teremos alguém que nos defenda como o padre Pedro. Ele era um profeta do povo pobre. Ele sim, era dos nossos e não tinha vergonha de andar com a gente, do jeito da gente.”

Rezamos juntos de maneira simples como Pedro sempre foi muito simples. Cada um, expressando sua oração espontânea e muito sincera. Senti que brotava do coração daquelas pessoas humildes, que foram ali, se lembrar do seu profeta. Quando elas se foram, fiquei por ali mais alguns instantes. Senti a mesma experiência pela qual passou Maria Madalena, diante do tumulo de Jesus: “Tiraram do túmulo o Senhor, e não sabemos onde o colocaram.” (Jo 20, 2) Ele ressuscitou!

Pedro era senhor de si mesmo. Um autêntico seguidor dos passos de Jesus de Nazaré, a quem se referia como a testemunha fiel. Frequentemente o víamos falar, que éramos seguidores do RESSUSCITADO e que ELE estava conosco. Nos momentos mais difíceis das nossas vidas, lá vinha Pedro, repetindo este mantra: “ELE é conosco!” Tinha plena convicção de que alcançaria a sua ressurreição. Não duvidava jamais desta verdade absoluta para ele. Expressou isto num de seus poemas: “Para descansar eu quero só esta cruz de pau com chuva e sol, estes sete palmos e a Ressurreição!” (Para Descansar – Pedro Casaldáliga)

Pedro soube viver a pobreza evangélica em grau extremo. Fez da sua vida uma entrega confiante e absoluta nas mãos de Deus. A simplicidade no viver, fez com que desenvolvesse a mística, o que manteve sempre de olhos bem abetos, frente a realidade que viveu no baixo Araguaia. Bem ao seu estilo, foi um pastor diferente da linhagem de muitos pastores. Um homem de extrema coragem, apesar de seu corpo franzino. Decididamente ficou ao lado dos povos indígenas, dos peões expulsos de suas terras pelo terror do latifúndio. No começo de sua caminhada por estas bandas já mostrou a que veio, traduzindo em letras garrafais o sofrimento dos pobres sofredores na sua primeira carta pastoral: ”Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”. 

Apesar de ter sido um homem elétrico e cheio de vida, a morte sempre o rondava, por onde quer que passasse. Os arquitetos da morte, transvestidos de latifundiários, o quiseram matar inúmeras vezes. O martírio do Padre João Bosco Penido Burnier aconteceu em sua presença. Assim que cheguei à Prelazia, vivi uma cena que muito me marcou. Um dos pistoleiros, que havia sido contratado para dar fim a vida do bispo, veio confessar a tal façanha. Não teve coragem de atirar naquele homem franzino. Deixou a arma onde estava e, embrenhou-se na mata por longos anos. Viera pedir que o bispo o batizasse, já que não fora batizado. Descanse em paz, nobre guerreiro! Como tu mesmo disseste, descanse apreciando as águas do Araguaia que descem para desaguar no rio Tocantins.

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