Terça feira da segunda semana da Páscoa. Vamos fazendo a nossa caminhada, adentrando cada vez mais no calendário que ora estamos vivendo. 26 de abril é uma data histórica para a cristandade católica. No dia de hoje, no fatídico ano de 1500, era celebrada a primeira missa no solo que, posteriormente, viria a se chamar Brasil. Num domingo de Páscoa, Frei Henrique de Coimbra (1465-1532), frade português, presidia a Eucaristia na praia de Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália, litoral sul da Bahia. Tal cerimônia foi “assistida” pela comitiva portuguesa e também pelos indígenas desconfiados e apreensivos, diante de homens vestidos com suas roupas estranhas.
Malfadado o dia em que a Igreja Católica embarcou na canoa furada da Corte portuguesa. A Igreja aliou-se ao projeto expansionista e devastador português, no intuito de recuperar as perdas territoriais que a cristandade havia perdido com o advento da Reforma Protestante, no início de século XVI. Em busca de novos adeptos, novos fieis e novas almas. Diante de uma população desnuda e ligeiramente “preguiçosa”, tratou de batizar “nativos” e negros, para que assim pudessem ser detentores de uma alma. Onde já se viu andar desnudos, expondo a todos os olhos a sua “vergonha”? Somente uma gente sem alma podia assim viver.
Por estas e outras é que a Igreja Católica foi conivente com o massacre de indígenas e negros durante o processo da expansão colonial na América. Os povos originários e o povo negro experimentaram na própria pele a crueza desta invasão em nome do “descobrimento”. Tem razão o filósofo argentino Enrique Dussel quando afirma: “O que houve no Brasil não foi “Descobrimento”, mas “Encobrimento”. Uma tentativa de fazer a cultura europeia se sobrepor a toda a cultura ancestral milenar dos povos originários. Tudo isso aconteceu sob o olhar complacente dos membros da Igreja que se faziam presentes na embarcação portuguesa.
O processo colonial desencadeado na América deixou suas marcas profundas. A História precisa ser reescrita sob o olhar e a perspectiva dos povos dominados. Achar que tudo foi as mil maravilhas para indígenas e negros, é uma grande falácia. Olhar para a história do passado é garantir no presente, que no futuro, não sejamos continuadores do preconceito e do racismo que ainda impera em nossa sociedade. Indígenas e negros ainda carregam uma cruz muito pesada, proveniente do que significou para ambos, as marcas profundas do período colonial. Talvez por razoes como estas, por ocasião da visita do Papa João Paulo II ao Peru em 1985, os indígenas tenham entregado ao pontífice uma carta com os seguintes dizeres: “Nós, índios dos Andes e da América, decidimos devolver-lhe sua Bíblia, porque em cinco séculos ela não nos deu nem amor, nem paz, nem justiça. Por favor, tome de novo sua Bíblia e devolva-a a nossos opressores, por que eles necessitam seus preceitos morais mais do que nós”.
Corroborando com este pensamento, a liturgia deste dia é por demais significativa. Num dialogo franco entre Jesus e Nicodemos, o Nazareno adverte a outro mestre em Israel, da necessidade: “Vós deveis nascer do alto”. (Jo 3,7) O que significa realizar em nosso ser uma transformação profunda. Um nascer de novo, sob uma nova perspectiva de ver, sentir a agir, diante do novo ser que assumimos em nós. Retomar toda a nossa humanidade perdida. Significa ter a oportunidade de recomeçar a vida, tendo como eixo central a mensagem que Jesus veio trazer a nós. É estar sempre abertos à novidade que Deus fez acontecer na pessoa de Jesus, encarnando em nossa realidade humana. É sermos “jesuânicos”, assumindo em nossa vida o projeto de Deus na procura do Reino.
Nascer do alto, portanto, é nascer de novo! Como estamos ainda no contexto pascal, nada melhor do que mirarmos na pessoa de Jesus. Ele é a grande novidade que Deus fez acontecer em nossa história humana, quando pela cruz, inaugurou a vida nova. É através da sua cruz que Ele demonstra para nós o seu maior ato de amor, doando sua vida em favor da humanidade. Se assim também pensarmos, seremos guiados pelo Espírito de Deus. É o Espírito que renova as nossas forças e nos faz renascer para um mundo novo, onde haveremos de desfrutar de dias melhores. Quem sabe renascendo na busca incessante da “Terra do Bem Viver” da concepção indígena, “sob os princípios da reciprocidade entre as pessoas, da amizade fraterna, da convivência com outros seres da natureza e do profundo respeito pela terra”. Awire! Wedi ahode!
Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.