No princípio era a Palavra, hoje é a Palavra, no final nos defrontaremos novamente com a Palavra

Reflexão litúrgica: Quinta-feira, 05/10/23,
XXVI Semana do Tempo Comum,
Memória de São Benedito, o Negro, religioso
ou Santa Faustina Kowalska, virgem

  Na Liturgia desta quarta-feira, 26ª Semana do Tempo Comum, vemos na 1a Leitura (Ne 8,1-4a.5-6.7b-12), a importância da Palavra de Deus na vida das pessoas reunidas em assembleia, isto é, participando da vida da Comunidade, lendo, estudando e fazendo a experiência da Palavra de Deus. A vida e o país são construídos a partir da Palavra de Deus (Pós-exílio). Embora a Bíblia seja o segundo livro escrito por Deus (o primeiro é a vida), e não tendo a finalidade científica, ela forma as pessoas na justiça: “Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar a verdade, refutar o erro, corrigir as faltas e ensinar a maneira certa de viver (educar na justiça), a fim de que a pessoa de Deus seja perfeita, e perfeitamente preparada para toda boa obra” (2Tim 3, 16-17).

Em torno da Palavra, as pessoas tentam reconstruir o país, recuperar a memória do passado e conservar a própria identidade como povo. Esse texto de Neemias é uma catequese, uma liturgia, enfim é um modelo de como deve ser uma Celebração da Palavra:

1º) Gera Comunidade

– Toda comunidade é convocada a escutar a Palavra;

– O local da leitura é cuidadosamente preparado.

2º) Gera louvor a Deus

– O Livro é acolhido de pé, de forma solene e em atitude de respeito. “Para que o mundo creia” (Ex: A reanimação de Lázaro).

3º) Leitura e homilia mexem com a vida do povo

– A Palavra é aclamada pela assembleia, proclamada claramente e explicada numa linguagem compreensível a todos;

– A Palavra interpela e provoca no povo uma atitude de conversão. Falou da vida, dos erros, sofrimentos e esperanças. “Todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei”. Emoção.

4º) Caráter festivo: “Não fiqueis tristes nem choreis”

– Tudo termina numa grande festa: a Palavra é geradora de alegria e festa. Tempo da graça de Deus, kairós: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus”.

5º) Gera partilha, solidariedade, conversão, mudança. “Um novo mundo possível”. Novo comportamento.

O Catecismo da Igreja Católica nos números 2.652 e seguintes, apresenta algumas dicas de como entender melhor a Palavra de Deus – “Os degraus que devemos subir” – Leitura Orante:

1º) Ponto de Partida – conhecer o texto – situar, explicar. Questão: O que diz o texto – exegese.

2º) Meditar o texto, atualizar, ruminar, remastigar, aplicar. Questão: o que diz o texto hoje – hermenêutica.

3º) Suplicar, recitar, orar. Questão: o que o texto me faz dizer a Deus. Resposta – mexe com a vida, força da Palavra.

4º) Ponto de chegada – Contemplação e experiência de Deus. Agir, compromisso com o Reino. Ver o mundo, a vida, o passado, o presente e o futuro com os olhos de Deus.

Salmo 18

Algumas pessoas, às vezes, nos dizem: “se Deus falasse comigo, se eu o visse etc., faria grandes proezas pelo bem, pela Igreja e assim por diante”. Muitos que o viram crucificaram-no, outros que não o viram creram nele. O critério é se acolhemos ou não a sua Palavra. Neste sentido, o Salmo de hoje (18b) nos ajuda a pensar: “Vossa Lei é perfeita, vossas Palavras são espírito e vida”.

No Evangelho (Lc 10,1-12), vemos que todos somos enviados por Jesus para anunciar a paz e a vida nova num mundo ferido por muito sofrimento. Neste envio, as instruções são explicitas: mansidão, pobreza, ser portadores de paz, contentar-se com o que há, interessar-se pelos necessitados e anunciar o Reino; se rejeitados, repetir o anúncio; não se deixar levar por um entusiasmo fácil diante do sucesso; a única coisa válida é ser membros do Reino; enfim, estar convencidos de que o Reino não se constrói em um dia.

Sabemos que a missão da Igreja e do cristão é evangelizar, evangelizar implica ser enviados, enviados a proclamar a Boa Notícia que é Jesus, e Jesus é a salvação, não só da alma, mas também do corpo, do ambiente, enfim da pessoa por inteiro. Evangelizar é se preocupar com a cidadania das pessoas, pois todo ser humano é sujeito de direitos, à vida digna, ao trabalho justamente remunerado, à liberdade, à propriedade, à associação, à manifestação das opiniões, ao exercício do culto de Deus, segundo a própria consciência, à participação na vida política da comunidade, e deveres, de justiça e de caridade. Desde Leão XIII, a Igreja nos diz que as pessoas carentes devem receber auxílio, não por esmola, mas por justiça, porque têm o direito de viver em termos humanos e dignos.

A Evangelização implica em levar a Boa Nova a todas as realidades, procurando fazer com que as massas se conformem aos critérios do Reino de Deus. Por isso, a ação evangelizadora deve atingir, também, o mundo da Política, entendida no seu real sentido, como busca e promoção do bem comum, e que, para tal, se encarna em instrumentos operacionais, que são os partidos políticos, as organizações populares e outras instituições (EN 29-31, Puebla 507-534, Doc. 40 da CNBB, 73-83).

A relação das pessoas com os bens materiais costuma repercutir profundamente na sua vida espiritual: de um lado, a miséria pode embrutecer a pessoa humana e nela excitar paixões, constituindo forte tentação para que viole a lei de Deus; doutro lado, a opulência endurece o coração, dificultando a compreensão dos valores invisíveis e eternos.

Por isso, à Igreja, interessam as normas que regem a vida social e econômica, elas se relacionam com a consciência moral e com o comportamento religioso das pessoas. Pronunciando-se sobre tais questões, a Igreja tem consciência de não estar negligenciando a tarefa religiosa que lhes foi confiada, julga, ao contrário, estar cumprindo um dever: o dever de tornar o Evangelho presente em todas as situações humanas (cf. Paulo VI, PP, 13 e 42 e Catecismo da Igreja Católica, 2032).

A Igreja, para melhor evangelizar, deve estar com os pés no chão (não podemos nos esquecer: nós somos Igreja), isto é, analisar a realidade, analisar a conjuntura política-social-econômica do país, a partir da fé, a partir do Evangelho, a partir do Projeto do Reino de Deus, da Palavra de Deus, da Prática de Jesus e da Tradição Cristã.

A realidade nos ajuda a descobrir o sentido mais profundo da mensagem evangélica e a viver com maior autenticidade a nossa fé. Não podemos nos limitar a dizer que a fé nos proporciona a luz para interpretar melhor a realidade. Jesus “percorria todas as cidades e povoados” (Mt 9,35ss), tinha toda uma pedagogia para evangelizar. Ex: Com a Samaritana, com os discípulos de Emaús etc.

O Evangelho de Jesus tem uma dimensão social tão profunda que deixá-la de lado ou negá-la significa desfigurar completamente o anúncio e a prática de Jesus Cristo, o Filho de Deus, razão de nossa fé. Fazer uma opção de Fé cristã, sem assumir um compromisso social na linha da busca da justiça, da solidariedade, da supressão das situações de miséria, da justa distribuição dos bens, da defesa da vida, da opção pelos pobres, da organização dos trabalhadores em defesa dos seus direitos fundamentais, é uma opção de fé incompleta, capenga, insuficiente. Fazer uma opção de fé e colocar-se contra esse compromisso é uma opção de fé falsa. É uma idolatria. A opção de compromisso social é uma graça de Deus, se não a tivermos, mas, pelo menos, não criticarmos os que a possuem, já é um grande avanço. Combater ou depreciar os que caminham por essa direção é combater e depreciar o próprio Deus que vê, ouve e desce para libertar todos os que sofrem as consequências desse mundo injusto e desigual. O que mais machuca são as críticas que vêm de dentro, dos próprios irmãos e irmãs, dos próprios cristãos.

Oxalá ninguém precise apresentar, um dia, diante do Tribunal de Deus, a desculpa que não sabia que era necessário se comprometer e transformar as realidades temporais. Enquanto é tempo, escutemos o clamor dos pobres e dos que sofrem, pois, caso contrário, “mesmo que um morto ressuscite, não ficaremos convencidos” (Lc 16, 19-31).

Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.


Padre Leomar Antonio Montagna é presbítero da Arquidiocese de Maringá, Paraná. Doutorando em Teologia e mestrado em Filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Câmpus de Curitiba. Foi professor de Teologia na Faculdade Missioneira do Paraná – FAMIPAR – Cascavel, do Curso de Filosofia da PUCPR – Câmpus Maringá. Atualmente é Pároco da Paróquia Nossa Senhora das Graças em Sarandi PR.