O abraço que não dei

Amanhecer de uma quinta feira. Vivemos tempos difíceis. A pandemia parece não ter mais fim. A cada dia, uma notícia nova nos deixa apreensivos. Quando se pensa que tudo já passou, lá vem o vírus, aprontando mais uma das suas. Este cenário todo, nos deixa cabisbaixos. O dia de ontem foi um dos mais tristes, neste meu processo de recuperação. Dores inexplicáveis pelo corpo. Nunca me senti tão sozinho e carente de um abraço real, que não aquele dos padrões virtuais. O meu ser anseia pelo calor de um abraço verdadeiro, daqueles que sentimos os corações pulsando, num mesmo compasso. Não vejo a hora de cair dentro de um abraço amigo cheio de vida!

Uma quinta feira diferente dos demais dias. Rezei hoje no mais absoluto silêncio. Meus parceiros de oração, não se fizeram presentes, para juntos louvarmos a Deus. Acompanhei o romper da aurora, perscrutando o som ensurdecedor da floresta. Hoje, pude dizer que experimentei em mim, aquilo que me propusera um dos anciãos indígenas: “É preciso que você, não somente ouça a voz que vem da floresta, mas necessita sentir este clamor dentro de você, como se este pulsar, ecoasse no seu coração.” Experimentei em mim a profundidade desta solene harmonia. Um som que adentra a alma e nos faz conectar com o universo, em forma de agradecimento.

É evidente que todos estamos necessitados de abraços. Faz parte das nossas vidas a necessidade de tê-los em nós. Dificilmente encontraremos alguém, sobretudo nos dias de hoje, que não anseia por eles, os abraços. Mas quero me referir ao contexto de um abraço mais amplo, do verbo abraçar. Tendo como base a nossa fé cristã, este verbo assume uma nova configuração, que envolve, adesão, compromisso e desprendimento. Abraçar no sentido de tomar como nossa, algumas causas pelas quais damos as nossas vidas. É o mesmo que propõe Jesus àqueles e àquelas que se dispõem caminhar consigo, abraçando as mesmas causas de seu projeto messiânico: Ir aonde o outro está.

Viver a fé sem abraçar as mesmas causas de Jesus de Nazaré, torna-se semelhante àqueles que a vivenciam a sua fé de forma intimista, venerando um Deus egoisticamente, somente para si mesmos, sem se comprometerem com a construção do Reino que passa, necessariamente, pelas nossas mãos. São os mesmos que se arvoram no direito do “quero amar somente a ti, Senhor!”. O Deus das conveniências e dos interesses mesquinhos, satisfazendo os caprichos egoísticos. Talvez tenha sido por causa destes que Jesus tenha dito: “Seja quente ou frio, mas não morno, senão vou te vomitar da minha boca.” (Apo 3,16)

Realidade que requer discernimento de qual Deus estamos servindo e abraçando as suas causas. O Deus de Jesus é o mesmo que abraça a causa dos pequenos, dos sofredores, dos esquecidos. Discernir é enxergar o mundo com outros olhos. Os olhos do coração Se bem que, na compreensão de Jesus, “O olho é a lâmpada do corpo. Se teu olho é bom, todo o teu corpo se encherá de luz. Mas se ele é mau, todo teu corpo se encherá de escuridão. Se a luz que há em ti está apagada, imensa é a escuridão.” (Mt 6,22-24) Na ótica de Jesus, jamais se concebe a ideia daqueles “seus seguidores”, que fizeram uma manifestação contra as pessoas em situação de rua, na cidade de São Paulo. Enquanto o padre Júlio Lancellotti, se desdobra para dar conta de acompanhar os sofrimentos daquelas pessoas, alguns cristãos, melhores que os demais, realizaram tamanha façanha, contrariando toda a perspectiva do projeto salvífico de Deus em Jesus. Razões como estas, levou alguém a assim se manifestar: “Jesus é um cara legal o que estraga é o fã clube” (Desconheço a autoria)

Exemplos não faltam de pessoas que abraçaram e ainda abraçam as mesmas causas de Jesus e dão as suas vidas por elas. Madre Teresa de Calcutá, sem dúvida, foi uma delas. Ela estava ciente da sua pequenez diante de coisas tão complexas. Mesmo assim seguia remando contra a correnteza, acreditando sempre que, “o que eu faço é uma gota no meio de um oceano. Mas sem ela, o oceano será menor.” Abraçar as causas dos oprimidos, devolvendo a sua dignidade, como fez Paulo Freire que assim descreveu em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, elucidando para nós a discussão em torno da oposição entre humanização e desumanização, na difícil luta de recuperar a humanidade dos oprimidos: “(…) somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos”.