O anjo do asfalto

 

O meu dia desta quinta-feira começou ainda muito cedo. Quis surpreender a aurora com as minhas humildes preces. Louvação ao Deus Criador pelo dom da vida. Estar vivo neste atual contexto é um prêmio. Que o digam as famílias enlutadas pela morte dos seus entes queridos. Perdi muitos amigos e amigas para este vírus traiçoeiro. A cada dia que me chega a notícia da páscoa antecipada de alguns destes, o sentimento de indignação queima em meu peito, ao saber que muitas destas mortes poderiam e deveriam ser evitadas. Estamos à mercê da sorte, ainda mais depois da brilhante fala do ministro da saúde Marcelo Queiroga, que afirmou nesta quarta-feira (18), ser contrário ao uso obrigatório da máscara como medida de proteção à covid-19. E ele é médico, imagina se não o fosse?

A noticia boa fica por conta, mais uma vez do padre Júlio Renato Lancellotti, que foi indicado e irá receber o Prêmio Zilda Arns de 2021. Este é um prêmio criado no ano de 2017, pela Câmara dos Deputados, como forma de reconhecimento àquelas pessoas e instituições que lutam pela Defesa e Promoção dos Direitos da Pessoa Idosa. Evidentemente que o padre Júlio não foi escolhido apenas por cuidar das pessoas idosas, mas pelo seu trabalho incansável às pessoas em situação de rua em São Paulo. Seu nome foi indicado pelo deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), que ainda conseguiu colher cerca de cinco mil assinaturas nas redes sociais, aprovando a sua indicação. Fui uma das pessoas que lá votou. O mais triste a observar, pelos comentários odiosos e agressivos, ali postados nas redes, é que algumas pessoas odeiam este “anjo do asfalto”, como é carinhosamente chamado, pelo seu trabalho humanitário, junto aquelas pessoas a quem chama de irmãos e irmãs.

Faz todo sentido o título que foi dado a este importante prêmio. Seu nome homenageia a Dra. Zilda Arns Neumann, médica pediatra, que atuou em causas humanitárias e sanitaristas. Ela foi uma das fundadoras da Pastoral da Criança, ajudando a salvar centenas de milhares de vidas das crianças por este mundo afora. De lembrar que a Drª Zilda, morreu em uma desta sua missão, quando estava no Haiti. Ela foi uma das 300 mil pessoas mortas, entre milhares de feridos, no dia 12 de janeiro de 2010. Poucos dias antes desta tragédia, ela passou conosco alguns dias aqui em São Félix, num dos encontros da Pastoral da Criança da Prelazia. Mal sabíamos que no abraço derradeiro, e com um sorriso estampado no rosto, que lhe era peculiar, despediu-se de nós para o seu encontro pascal na Páscoa do Ressuscitado.

“A cabeça pensa a partir de onde os pés estão pisando”, dir-nos-ia o teólogo, escritor, filósofo Leonardo Boff. O padre Júlio, com certeza, pisa o mesmo chão dos pobres das ruas de São Paulo. Estima-se que são em torno de 32 mil pessoas em situação de rua na capital paulista. Daí porque a sua cabeça pensar a partir desta realidade vivida por estas pessoas. Diferentemente daquelas pessoas que o criticam, uma vez que tais pessoas não pisam o mesmo chão. Além de nada fazerem pelas pessoas em situação de vulnerabilidade, ainda criticam a atuação do padre Júlio que, já não é mais nenhum garoto, correndo todos os riscos, diante de uma pandemia, cujo vírus invisível, trafega por todos os cantos. Isso quando a grande maioria dos espertos políticos, lideranças religiosas, “pessoas de bem” estão no conforto de seus lares, desfrutando de suas camas quentes e confortáveis, lá se vai o padre Júlio com o seu jaleco, fazendo fileira junto com sua equipe.

Nosso bispo Pedro mantinha pelo padre Júlio uma profunda admiração. Se referia a ele como “o São Francisco das ruas dos dias de hoje”. Conta-se que, voltando de um dos retiros que fora orientar (não gostava da palavra “pregar”), Pedro passou por São Paulo e quis encontrar-se com o padre Júlio. De dentro de sua bolsa simples, que Pedro carregava, tirou um envelope e o entregou ao padre Júlio. Dentro daquele envelope estava contido todo o dinheiro que havia recebido dos bispos, como forma de gratificação pelo “retiro pregado”. Pedro nem sequer soube quanto de dinheiro havia ali dentro daquele envelope. Apenas disse: “é para o povo de rua”. O peregrino anjo do asfalto e o profeta dos pobres do Araguaia, servem como exemplificação do que disse Jesus na conclusão do Evangelho de hoje: “Porque muitos são chamados, e poucos são escolhidos”. (Mt 22,14). Oxalá, sejamos nós tambem escolhidos para fazer parte daqueles e daquelas que se colocam na dinâmica do Reino e estejamos dispostos a realizar em nós a prática da nova justiça trazida por Jesus. Até porque, “Enquanto há vida, há esperança.” (Ecles 9,4)