O anjo rebelde

Uma segunda-feira (08) pra lá de preguiçosa deu início a nossa semana. Muita chuva aqui pelas bandas do Araguaia. O rio agradece, pois está enchendo dia após dia. Sinal de que teremos muitos peixes neste ano. Muitos até gostariam que fosse uma manhã de domingo, para permanecerem mais tempo em, suas camas quentinhas. Mas a semana já começa dando o seu ar da graça.

Rezei hoje com o salmo 103 (104). Um texto belíssimo, que enaltece a grandeza de nosso Deus: “Quão numerosas, ó Senhor, são vossas obras, e que sabedoria em todas elas! Encheu-se a terra com as vossas criaturas! Bendize, ó minha alma, ao Senhor!” É Deus mesmo que manifesta o seu amor, através da justiça que defende os que não têm defesa, realizando uma história nova, a partir deles. Um Deus presente na história da humanidade, cuja dimensão infinita de seu amor é comparada a amorosidade de um pai para com seus filhos. Um Deus cheio de compaixão, que é sofre junto com os seus filhos.

Um Deus que é o pai dos pobres, assim como foi Dom Hélder Câmara (1909-1999), o amigo dos pobres. Ontem foi o dia de seu aniversário natalício. Um homem de Deus, profundamente identificado com as causas dos pequenos. Pobre com os pobres. Como arcebispo emérito de Olinda e Recife, dedicou a sua vida na defesa da democracia e dos direitos humanos. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Era também chamado de o peregrino da justiça e da paz. Um dos maiores opositores da ditadura militar no Brasil. Por causa da sua atuação combativa, foi proibido pelos militares de veicular o seu nome nos meios de comunicação por 11 anos consecutivos. O bispo vermelho, segundo os militares.

Dom Hélder era o grande amigo de Pedro. Ambos eram afinados no jeito de conduzir a Igreja da libertação. Trocavam correspondências frequentemente. Este pequenino homem de Deus levou a sério as determinações do Concílio Vaticano II (1962-1965). Assim que voltou de Roma, entregou o palácio onde morava para a Comissão de Direitos Humanos, e foi morar num quartinho, nos fundos de uma igreja em Recife. Se antes, já vivia a sua vida na pobreza evangélica, radicalizou ainda mais após o Concílio. Um homem com o pensamento no céu, mas os pés ficados na terra, como Pedro. Ambos falavam a mesma linguagem e tinham o mesmo estilo de vida.

Linguagem esta que está sendo destoada em nossa “Santa Madre Igreja”. Algumas lideranças religiosas, inclusive bispos, estão sendo impiedosas na sua campanha de difamação da CNBB. Tudo por causa da Campanha da Fraternidade deste ano, que traz como tema: “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” – e do lema – “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2,14a). Uma campanha atualíssima, numa tentativa de estabelecer o diálogo ecumênico com as demais igrejas que fazem parte do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC. Atitude retrógrada e irresponsável de um determinado setor da igreja, que não concorda que igreja fale de temas que dizem respeito aos LGBTQI+, por exemplo. Além de chamarem as outras igrejas de seitas, estão raivosos porque os texto base da Campanha da Fraternidade discute a questão de gênero.

Que falta nos faz bispos como Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns e o próprio Pedro, que não tinham dificuldades em dialogar com as temáticas pertinentes de nossa sociedade. Homens que, ao invés de viverem trancafiados em seus ricos palácios, ditando normas e regras morais, estavam no meio do povo pobre. Os pobres eram os destinatários primeiros de sua evangelização. Numa das palestras que participei com dom Hélder, ele disse uma frase que eu nunca mais esqueci: “O verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Simples e direto.

Mas sigamos em frente, sem medo de ser felizes! “Enquanto os cães ladram, a caravana passa”. Ser igreja no contexto de um Brasil tão desigual é estar ao lado daqueles que mais sofrem estas desigualdades. Que o espírito profético de dom Hélder Câmara seja a bússola de nossa caminhada de igreja. Que nas nossas bandeiras de lutas cotidianas possamos dizer como dizia o nosso anjo rebelde: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”. (Dom Hélder Câmara)