O báculo de Pedro

O corpo de Pedro segue sendo transladado de Batatais/SP, rumo a Ribeirão Cascalheira. Atravessa neste momento o estado de Goiás. Chegará por volta das 14:00 horas, onde será velado esta noite no Santuário dos Mártires da Caminhada. Na terça feira (11), chegará a São Félix do Araguaia, onde faremos as cerimônias de despedia e o enterro na quarta feira (12). Será enterrado no mesmo cemitério, onde estão enterrados vários do povo Iny (Karajá). Este sempre foi um desejo de Pedro. Ser enterrado no meio dos indígenas e peões. Segundo ele, para passar a sua eternidade olhando para o Rio Araguaia.

Pedro chegou aqui por estas bandas no ano de 1968. Três anos depois, era sagrado bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Mesmo a contra gosto seu. Precisou que os Agentes de Pastoral o convencessem de que, como bispo, tinha muito mais força para ser a voz dos empobrecidos desta região de Mato Grosso. Um bispo diferente de todos os outros. Esta diferença Já começou, quando escolhe os símbolos que marcariam definitivamente o seu pastoreio. Como báculo, escolheu um remo do povo Iny. O anel de tucum como o seu anel de bispo. E por fim a mitra, um chapéu de palha, típico dos peões e nordestinos.

A simplicidade e a humildade sempre foram sinais característicos deste homem de Deus. A sua vida falava por si. A sua pobreza evangélica não era definida de forma teórica ou no faz de conta de quem diz fazer opção pelos pobres. Ele vivia intensamente a radicalidade da pobreza, no seu jeito Pedro de ser, nos gestos concretos cotidianos e nas suas muitas escritas. Um Francisco de Assis do Araguaia. Não se deixava trair nas suas convicções. Uma fidelidade vivida a cada dia, que impressionava a todos os que se achegavam a ele.

Assim que se sagrou bispo, escreveu a sua primeira carta pastoral: “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Uma carta que significou um divisor de águas em sua vida. Nesta carta ele já deu mostra a que veio. Num dos seus parágrafos ele dizia: “Se ‘a primeira missão do bispo é a de ser profeta’ e ‘o profeta é a voz daqueles que não têm voz’ (card. Marty), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal.” Esta carta ganhou o mundo e tocou fundo nas pretensões dos militares que comandavam o Brasil com mão de ferro.

Ali começou a perseguição dos militares à Pedro. Quiseram a todo custo expulsá-lo do Brasil, mas graças a atuação de seu amigo, Dom Paulo Evaristo Arns, que intercedeu junto ao Papa Paulo VI, não tiveram peito de mandá-lo de volta à Espanha. Neste sentido, o papa foi incisivo: “Se mexerem com Pedro, estarão mexendo com o próprio papa.” Não o expulsaram, mas também não lhe deram sossego quanto a perseguição. Talvez por este motivo a sua aversão ao militarismo e as ditaduras.

Pedro soube como ninguém desenhar o seu modelo de Igreja. A Prelazia era a imagem e semelhança de Pedro. Todos os que para cá se dirigiam para trabalhar nesta igreja, sabiam, de antemão, que era uma igreja diferente. Uma igreja pobre com e para os pobres. Pedro não abria mão deste jeito da igreja ser. Tudo era muito bem planejado pelo seu bispo que não dizia como as pessoas deveriam ser, enquanto agentes de pastoral. Ele simplesmente ia à frente fazendo e mostrando, através de seu exemplo. Uma das coisas que mais me chamou a atenção quando aqui cheguei, foi a forma como eram organizadas as equipes de pastoral. Todas elas eram mistas, os seja, numa mesma casa, moravam homens e mulheres, que dividiam entre si os afazeres, sejam da casa, ou da pastoral em si. Aprendi muito com as irmãs Marines e Irena. Ele na permitia que as congregações chegassem e estabelecessem as suas comunidades religiosas fechadas entre si, como pequenos feudos.

Foi com estas mulheres guerreiras, que passei pelo teste de fogo. Em 1992, a Terra Indígena Xavante de Marãiwatsédé iniciou o seu processo de invasão, comandada por grandes fazendeiros e incentivando os pequenos a fazerem o mesmo. A Prelazia logo se manifestou contraria, denunciando veementemente, mais esta agressão ao povo Xavante. A nossa equipe de pastoral estava no olho do furacão. Fomos todos ameaçados, tanto que numa de nossas noites, achávamos que era a nossa ultima noite, de tanto que rondavam a nossa casa. Naquela noite rezamos de mãos dadas e chorando, pois sabíamos que poderia ser a nossa ultima noite. Tanto que naquela noite, a igreja que ficava ao lado da nossa casa, amanheceu pixada, com palavra duras e agressivas a nós, a Pedro e a Prelazia em si.

Amanheceu e nos dirigimos a São Félix, para beber um pouco das forças de Pedro. Assim que ouviu o nosso relato emocionado, disse-nos palavras de conforto e concluiu com muita serenidade: “A causa vale a pena se doar a vida por ela.” Assim que voltamos para a nossa casa, trouxemos conosco o bispo Pedro, que passou uma temporada conosco, como presença de profeta que caminha com os seus. Como não se apaixonar por esta igreja e por este homem que caminhava a frente, sendo igreja com todos aqueles marcados para morrer. Pedro, uma lição de vida sem ter nada a temer.