O coração da floresta

Sábado da Solenidade do Imaculado Coração de Maria. Se ontem a liturgia contemplou o Sagrado Coração de Jesus, hoje é a vez de seu Filho, Jesus de Nazaré. Lembro de nosso bispo Pedro se referindo a estas duas festas de uma forma muito encarnada e pé no chão, diferentemente de alguns movimentos dentro da Igreja que ficam apenas na adoração, sem conexão com a realidade. O coração de Maria é o coração sofredor da mulher pobre da periferia de Nazaré, que via a realidade de marginalização de seu povo e se posicionava contra os algozes que promoviam as mazelas deste povo. Como costumava dizer Pedro, “o Deus da ‘Comadre de Nazaré’ é o Deus que ‘sacia de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias’”.

O coração da floresta está de luto. Um misto de dor, revolta e indignação tomou conta de todos nós que estamos aqui na Amazônia. Ontem aconteceu o velório de Bruno Pereira, em sua terra natal. Algumas etnias indígenas prestaram-lhe a última homenagem antes do sepultamento. Não resisti e deixe que o meu rosto fosse tomado pelas lágrimas. Uma tristeza infinda diante deste cenário, que poderia ser bem diferente, não fossem os escafandrista arautos da morte. Várias de nossas etnias também por aqui fizeram os seus rituais de despedida, entregando o corpo do amigo indigenista aos ancestrais. “De agora em diante, ele e Dom serão o guardiões de todos os habitantes da floresta”, me disse um dos caciques Iny, aqui da Ilha do Bananal.

Como disse a nota escrita pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato – Opi: “Nossos olhos misturam lágrimas de tristeza profunda e de revolta intensa. Mataram Bruno e seu amigo Dom à beira do rio Itacoaí, numa manhã de domingo de fim de inverno, quando ele voltava de uma temporada junto aos seus melhores amigos, junto aos seus melhores mestres, com os quais ele aprendeu a entoar os cantos da festa”. Apesar desta tragédia da morte anunciada dos dois marcados para morrer, os inimigos dos povos indígenas seguem aprontando das suas. Desta vez foi no nosso vizinho Mato Grosso do Sul. No dia de ontem (24), os Indígenas das etnias Kaiowá e Guarani foram duramente atacados e feridos por policiais do Batalhão de choque da Polícia Militar. A denúncia partiu da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Tudo isso aconteceu depois da tentativa de retomada de parte do território de Guapoy, no município de Amambai (MS), policiais militares e fazendeiros, sem qualquer tipo de ordem judicial, invadiram a área, no intuito de expulsar, através do uso da força, os indígenas. Segundo a APIB, há três pessoas desaparecidas desde a noite de quinta-feira, inclusive crianças. É bom lembrar que os massacres contra este povo se intensificaram em 1953, quando os Kaiowá foram expulsos da Terra Indígena pelos fazendeiros do Mato Grosso e pelo Governo Federal. Como indigenistas podemos parafrasear o cantor e compositor Cazuza: “os inimigos dos povos indígenas estão no poder”.

Resta-nos apelar para que a justiça seja feita. Justiça em letras garrafais. Não queremos vingança e nem “justiçamento”. O coração da floresta sangra por ver tanta destruição e morte, sonhando por dias melhores para os habitantes que da floresta dependem. Eles e também nós, uma vez que sem a floresta, a vida não há. O luto do coração da floresta virou a luta de todos que se identificam com esta grande causa. Quem conhece a floresta sabe o quanto ela significa para toda a população do planeta. Floresta esta que Pedro assim a descrevia: “Quem fica na floresta um dia, quer escrever uma enciclopédia; quem passa cinco anos, fica em silêncio para perceber o quanto é profunda e complexa a Criação”.

O coração da floresta se mescla em dor com o coração da Mãe. É o que faz a liturgia deste sábado, trazendo-nos um dos relatos da infância de Jesus. Recorrendo a Lucas, especialista em narrar a infância do Mestre, vemos o garoto, com apenas 12 anos promovendo uma salutar rebeldia para desespero do coração de sua aflita Mãe. O moleque já era ciente de sua nobre missão: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,49) Bem que a Mãe pensou em dar-lhe umas boas palmadas, mas diante desta resposta, certamente ficou desconcertada. Ela sabia que o Filho era diferenciado e tinha que seguir a missão que Deus lhe havia confiado. Apesar da litrugia omitir o último versiculo, ele é significativo para entendermos o contexto: “E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens”. (Lc 2,52) Que possamos também nós, crescermos na sabedoria de Deus, para ficarmos antenados à luta pela vida em nossa sociedade. Sabedoria para transformar o luto em luta. Bruno e Dom vivem nas nossas lutas! De coração aberto como o da Mãe, sejamos voz e vez dos povos e da floresta.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.