O lamaçal da indignação

Estamos dando prosseguimento a uma semana muito importante para o nosso calendário de lutas no Brasil. Do dia 25 ao dia 29, estaremos vivenciando a Semana de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil. Sendo que o dia 28 é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. O Estado de Mato Grosso figura entre aqueles estados de maior incidência de trabalhos análogos à escravidão. Um nome imponente e bonito para dizer que ainda temos as senzalas nos dias de hoje, em pleno século XXI. Triste, mas é a mais pura verdade. Pessoas em condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais, colocando em risco a saúde e a vida do pobre trabalhador.

Rezei hoje fazendo memória das 272 pessoas que perderam as suas vidas no dia 25 de janeiro de 2019, pela lama criminosa da Vale, em Brumadinho, Minas Gerais. Quantas vidas, quantos projetos, quantos sonhos foram interrompidos. Pessoas que, inocentemente, perderam tudo o que tinham. A vida humana não vale nada para a Vale. A mineradora segue impune, com a conivência e cumplicidade do Estado. A Vale não vale o que o gato enterra, diriam os mais velhos por aqui.

Dom Vicente de Paula Ferreira, C.Ss.R, bispo auxiliar de Belo Horizonte, num gesto concreto de solidariedade, assumiu a dor dos familiares. Segundo consta, por ocasião desta grande tragédia, ocorrida na cidade de Brumadinho, o referido bispo transferiu a sua residência para lá, no intuito de ajudar as famílias enlutadas, na busca por justiça e indenização por parte da empresa mineradora. Todavia, o lamaçal que tirou a vida de centenas de pessoas, continua presente nos corredores da empresa que segue na impunidade. Dom Vicente, que também é músico, compôs uma linda canção para homenagear aqueles que perderam tudo, inclusive a própria vida.

Dom Vicente é bispo da Igreja dos pobres. Para tomar tal atitude e ser testemunha de uma causa, não poderia ser diferente. Um bispo que não está encastelado em seu palácio. Certamente conhece a reprimenda que o religioso, capuchinho, modelo de vida na pobreza, do século XVII, São Bernardo, fez ao papa Eugênio III – “Não se esqueça que você é o sucessor de um pescador e não do imperador Constantino”. Ah se os nossos bispos tivessem atitudes proféticas como estas e vivessem como a imensa maioria do povo vive. Diante deste contexto, lembro-me sempre de um comentário feito pelo Frade Dominicano Frei Betto, quando alguém ao passar em frente ao palácio do bispo comentar: “Se eles fazem isto com o voto de pobreza, o que não devem fazer com o voto de castidade”.

Fazemos parte da Igreja peregrina de Jesus. Seguir os seus passos é encarnar em nós o mesmo espírito profético que fez o profeta camponês Amós: “vendem o inocente por dinheiro e o pobre por um par de sandálias; jogam o fraco no pó e não fazem justiça ao indefeso” (Am 2,6-7). Como ele que, assumindo as dores do pobre, enfrenta os poderosos opressores do povo, acusando-os de injustiça social, corrupção, de idolatria, de manipulação ideológica, de apropriação indébita do nome de Deus. O alvo principal da atuação profética de Amós são as autoridades constituídas: ao invés de promoverem condições de justiça e vida, exploram, oprimem e manipulam ideologicamente o povo, reduzindo-o à fraqueza, miséria, ao abandono e, consequentemente, à morte.

Dom Hélder Câmara, bispo de Olinda e Recife, ao voltar do Concílio Vaticano II (11 de outubro de 1962 – 8 de dezembro de 1965) também abandonou o seu palácio e foi morar num quartinho nos fundos de uma igreja. Entendia que, com este seu gesto, cumpriria as determinações de uma Igreja voltada aos mais pobres, como estava começando ali a trajetória desta igreja que havia feito a opção pelos pobres. Também Pedro, na mesma direção, cunhou a expressão que ficou famosa: “Na dúvida, fique do lado dos pobres”. Foi assim que passou a viver a sua vida, numa doação total a causa dos mais vulneráveis.

Atitude bem diferente pede Jesus aos que o querem segui-lo: “Os doutores da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso, vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois eles falam e não praticam”. (Mt 23, 1-3) Um belo discurso. Palavras, palavras, palavras. Falam bonito, mas da boca pra fora. A sua prática não acompanha aquilo que falam. O que Jesus propõem é que na nova comunidade todos e todas somos irmãos e irmãs, voltados para o serviço mútuo e reunidos em torno de Deus que é Pai e mãe, e de Jesus, que é o único líder que veio para servir e nos ensinar a também servir, como fizera o bispo Vicente de Paula Ferreira.