O martírio de um povo

Quarta feira (24) da quinta semana da quaresma. Nosso país segue sendo o epicentro da pandemia. Segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Brasil contabiliza nas últimas 24 horas, 3.251 vidas ceifadas. Não são apenas números frios de uma estatística macabra, mas um misto de dor, tristeza, pranto, luto, enfim de algumas famílias assustadas pelo agravamento da situação. Enquanto isso, o mandatário da nação, mente descaradamente em rede nacional, nos fazendo de idiotas.

Parem de nos matar! Este é o grito uníssono das famílias brasileiras desesperadas. Enquanto isso, o Brasil que possui expertise, como um dos maiores do mundo, no quesito vacinação de sua população, graças ao nosso Sistema Único de Saúde (SUS), nem sequer chegou a 5% de sua população vacinada para a Covid-19. Falta vontade política e falta vacina. As cepas seguem reproduzindo entre nós, constituindo uma ameaça à população de todo o planeta. Misericórdia Senhor, clamamos todos nós. Quantas vidas mais serão necessárias para que as instituições que nos governam tomem uma providência de cessar este genocídio?

O dia 24 de março é um dia emblemático para a caminhada da igreja na América Latina. Neste dia, no ano de 1980, era assassinado em El Salvador, o bispo Dom Oscar Arnulfo Romero Galdámez. Mais conhecido como Oscar Romero de América. Romero foi assassinado no momento em que celebrava a Eucaristia em um hospital da capital salvadorenha. O religioso era conhecido por seu empenho em favor da paz, pela defesa dos direitos humanos e por sua luta incansável contra as injustiças. Considerado também um dos pais da Teologia da Libertação. Deu a vida como martírio pelo seu povo pobre, massacrado pelas forças do capital. São Romero foi canonizado pelo Papa Francisco no dia 14 de outubro de 2018.

São Romero de América era um dos nossos parceiros muito próximo aqui da Prelazia de São Félix do Araguaia. Tudo por causa de sua amizade com Pedro. Nas suas férias, sempre no mês de fevereiro, Pedro dava um jeito de passar por El Salvador, para ver seu amigo confidente. Sobretudo nos últimos tempos, quando aquele bispo vinha sofrendo ameaças de morte. Ambos tinham uma sintonia quanto às ideias e também na condução de uma igreja mística, martirial e profética, na procura do Reino. O que mais impressionava a Pedro, é que Dom Oscar, estava sendo incompreendido, perseguido, caluniado, não somente pelos poderosos algozes, mas também por pessoas de dentro da própria igreja, que não aceitavam a sua radicalidade evangélica e entrega às causas de Jesus de Nazaré.

“O anjo do Senhor anunciou na véspera. O coração de El Salvador marcava 24 de março e de agonia. Tu ofertavas o Pão, o Corpo Vivo — o triturado Corpo de teu Povo;
Seu derramado Sangue vitorioso — o sangue campesino de teu Povo em massacre, que há de tingir em vinhos de alegria a Aurora conjurada!” Foi assim que Pedro iniciou um de seus poemas em homenagem ao martírio do amigo. Coincidentemente, no dia do assassinato de Dom Oscar, Pedro lia aqui em sua casa uma das cartas vindas de El Salvador, escrita dias antes de sua morte.

Pedro e Romero, dois homens comprometidos com a verdade do Evangelho no meio do povo. Dois homens identificados com a verdade que é o próprio Jesus em pessoa. Esse mesmo Jesus que a liturgia de hoje nos mostra, tentando convencer os fariseus de quem era ele e o que viera fazer, por vontade própria de Deus. Numa tentativa de dar-se a conhecer àqueles homens terríveis: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32) Ele é a verdade que liberta e salva. Aceitá-lo é entrar para a dinâmica da vida nova que relativiza tudo aquilo que antes parecia absoluto: riqueza, poder, idéias, estruturas. Caminhar na liberdade com Jesus só é possível quando rompemos com uma ordem injusta, que impede a experiência do amor de Deus através do amor às pessoas em nossa convivência diária.

Verdade que pressupõe uma fé comprometida e engajada como fez Romero, na luta pelo/com o seu povo. Celebrou o seu próprio martírio, tentando construir o Reino entre os seus mais pobres. Fé que não significa algo estanque, pronto e acabado, mas que se dá num processo de construção permanente. Fé, que na compreensão filosófica, significa um devir (do latim devenire, chegar), Uma fé que já é, mas que ainda não na sua concretude. Por isso a necessidade das mudanças pelas quais vamos passando. A cada dia este processo vai acontecendo, com o amadurecimento desta fé, revestida da verdade que é Jesus como o Verbo encarnado do Pai. Errando e acertando, mas buscando sempre caminhar na verdade, tendo o Reino como a utopia próxima possível: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. (Jo 4,16).