O não lugar

Sábado da primeira semana do Advento. Tempo este que nos preparamos para mais uma chegada d’Ele. O menino Deus que vem visitar o seu povo. Apesar das peripécias da vida, este é o momento de encher o coração de alegria, de expectativa esperançosa, onde possamos criar um clima de fraternidade e paz. Momento propício para desarmar os espíritos e corações, e assim entrar na dinâmica proposta por Deus para acolher o Reino que já está no meio de nós. Este é o prenúncio da liturgia do dia de hoje: “O Reino dos Céus está próximo”. (Mt 10,7)

O dia por aqui amanheceu carrancudo. São Pedro não estava para muitas conversas. Nuvens espessas cobriam a manhã do Araguaia. Motivação a mais, que manteve os meus hóspedes, por mais tempo em suas “camas”. Como sempre faço aos sábados, aproveitei para rezar na companhia de nosso profeta e pastor. Um silêncio sepulcral tomou conta daquele espaço. Aqui e ali se ouvia o cântico de algum sabiá, fazendo-nos companhia. Ainda que a chuva não caísse, fiquei ali meditando e confabulando com Pedro dos pobres do Araguaia. Sinto-me mais do que privilegiado de poder viver situações como estas.

Ali é o lugar que Pedro escolheu para estar, segundo ele, curtindo sua eternidade. Contemplando o Araguaia. Rio que segue recebendo as bem-vidas águas da chuva. A cada dia mais majestoso. Um rio que encanta e seduz, como a mim, que me senti cativado desde os primeiros olhares sobre ele. Sou feliz no Araguaia! Aqui é que sei ser feliz. São Félix é o lugar. Como diz a canção mineira: “Não precisa ter, um pontinho preto no mapa, mas quando a gente se afasta, coração pede pra voltar”. Pensamentos como estes, povoaram minha oração com Pedro neste pedacinho de lugar.

Um lugar para se estar. Este é o grande desafio da vida cotidiana. Todavia, apesar de termos recebido este mundo como dádiva do criador, muitos de nossos irmãos e irmãs, vivem a realidade do “não lugar”. Um mundo pensado e arquitetado para não caber os pobres e pequenos. Estes são aqueles a quem Jesus, no texto do Evangelho de hoje se refere como, “As ovelhas perdidas da casa de Israel! (Mt 10, 6) Situação não muito diferente para aquele pobre casal de Nazaré, José e Maria, pois também para eles, não havia lugar para que pudessem ver nascer o Menino-Deus em situação mais favorável. Um Deus que nasce pobre no meio dos pobres. Tudo por causa de um recenseamento promovido por um imperador, fazendo deste um instrumento de dominação, já que possibilitava saber quantas pessoas deviam pagar os impostos.

O Brasil não é um lugar para todos. Um Brasil desigual. Por mais que a Lei Maior diga que “todos são iguais perante a lei” (Art. 5º), uns são mais iguais que outros, sendo que o critério de desempate é exatamente o “dinheiro”. Pelo menos é o que diz uma pesquisa divulgada no dia de ontem (03), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo os dados desta pesquisa, “Síntese De Indicadores Sociais”, concluída no ano de 2020, a população branca tem renda 73% maior que preta e parda em 2020: “O levantamento do IBGE detalha que a população ocupada branca tinha um rendimento médio de R$ 3 mil mensais, enquanto pessoas pretas e pardas no Brasil ganharam no ano passado, em média, R$ 1,764 mil por mês”

Como cristãos e cristãs que queremos ser, somos desafiados a construir outro Brasil. Este que ai está não nos cabe a todos, enquanto houver pessoas de uma determinada casta que não pensa assim. Este é o desafio que nos é colocado pelo texto do evangelho da liturgia de hoje. Jesus preparando os seus para o enfrentamento de uma realidade desfavorável aos pequenos. Mateus nos apresenta uma síntese da atividade de Jesus, mostrando a raiz da ação messiânica do Nazareno. Uma ação concreta de Jesus que consiste na palavra (anunciar, ensinar) e ação (curar). Os destinatários primeiros são os mais pobres, necessitados e marginalizados. Ação que começa com Jesus e tem continuidade no seu discipulado que o segue mais de perto.

Somos, portanto, desafiados a devolver a dignidade dos pobres e marginalizados. As nossas comunidades precisam se transformar nestas sementeiras de esperançamento na construção desta nova realidade. Neste sentido, precisamos avançar com o nosso barco para as águas mais profundas (Lc 5,4), como nos propõe Jesus. Não permitir que aconteça conosco o que aconteceu com um padre amigo meu. A equipe de liturgia tinha o costume de escolher as pessoas, para fazerem as leituras nas celebrações. Escolheram uma moça linda, para a segunda leitura. Ao chegarem à sacristia, uma das pessoas alertou, que aquela era uma garota de programa. Escolheram então outra pessoa. Desconfiada, a moça procura o meu amigo ao final da celebração e lhe confidencia: “padre, não me deixaram fazer uma das leituras. Eu só queria dizer para o senhor que a pessoa que fez no meu lugar é um dos clientes meus”. A comunidade sendo o não lugar para ela.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.