O profeta rejeitado

Segunda feira da terceira semana da quaresma. Devagar vamos avançando rumo ao ápice deste tempo litúrgico. Um período especial em que temos a chance de fazer um balanço das nossas vidas e mudar de rota, rumo ao coração de Deus. Perfilar o nosso existir sob a ótica do Projeto de Deus, mudando o nosso jeito de ser, pensar, viver e agir neste mundo. Somente o amor é capaz de fazer esta transformação necessária, para abraçarmos com Jesus a sua missão de construir um mundo mais irmão. Somos assim desafiados a deixar o nosso coração transbordar de ternura e compaixão e, a semelhança do próprio Deus, sermos plenos de amorosidade.

Vencemos a primeira parte desta caminhada. No limiar da quaresma, 20 dias nos separam da vitória maiúscula de Deus sobre a morte, permitindo assim que seu Filho ganhasse a vida em forma de Ressurreição. Uma segundona especial, pois no dia de hoje, fazemos memória de um grande massacre ocorrido contra a população negra de Joanesburgo, na África do Sul, em 1960 (Massacre de Sharpeville). Em virtude desta tragédia, foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Desta forma o dia 21 de março passou a ser um dia de Luta contra toda forma de discriminação racial e a prática do racismo. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista! Alerta-nos aqueles que sofrem diretamente com o crime de racismo.

Uma segunda que ainda repercute em meu coração um dos textos da rica liturgia de ontem, extraído do Livro do Êxodo: “Eu vi a aflição do meu povo que está no Egito e ouvi o seu clamor por causa da dureza de seus opressores. Sim, conheço os seus sofrimentos. Desci para libertá-los das mãos dos egípcios, e fazê-los sair daquele país para uma terra boa e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel”. (Ex 3, 7-8) Um Deus comprometido com os pequenos que “conhece”, “vê”, “ouve” e “desce”, para libertar os seus. Um Deus aliado das causas dos marginalizados, que os liberta, dando-lhes condição de posse total da vida (terra onde corre leite e mel). Deus que não age sozinho, mas faz a libertação acontecer, através de um movimento para se atingir o ideal, e este se concretiza num momento histórico bem determinado, sempre com a mediação humana.

Já na liturgia do dia de hoje, Jesus volta à sua terra natal, Nazaré da Galileia. Está junto aos seus conterrâneos que o viam com grande admiração, dada a sua sabedoria e ensinamentos. Entretanto, perante a classe religiosa de seu tempo, a admiração deu lugar à fúria, visto que Jesus não realizava ali entre eles os milagres que havia feito em outros lugares: “Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria”. (Lc 4, 24). Na verdade, a rejeição de Jesus por parte dos seus compatriotas dá uma mostra da hostilidade e da rejeição de toda a atividade messiânica de Jesus por parte de todo o seu povo. As lideranças religiosas são os primeiros a rejeitarem a Jesus e o seu projeto, e ainda instigam o povo a pensar como eles, tramando a morte do Messias.

Jesus que é rejeitado pelos seus concidadãos e, sobretudo, pelas autoridades religiosas de seu tempo. Tudo porque Ele se colocava na posição de Messias enviado por Deus: “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura, que vocês acabam de ouvir.” (Lc 4,21) Jesus que está no início de sua vida pública de um Messias que iria realizar a missão libertadora dos pobres e oprimidos. Jesus aplica a passagem a si mesmo, assumindo-a naquele momento histórico. Coisa de difícil entendimento para aqueles que haviam apoderado do domínio da religião no Templo e nas sinagogas, marginalizando ainda mais os pequenos. Diferentemente da proposta de Jesus, que encaminha a humanidade para uma situação de reconciliação, de partilha, tornando possíveis a igualdade, a fraternidade e a comunhão de todos e todas.

Não estamos muito distantes desta realidade enfrentada por Jesus com as nossas práticas religiosas que vemos acontecer no meio de nós. Muitos de nós ainda continuamos rejeitando Jesus, na medida em que mantemos uma prática de fé fundamentalista, arraigada num moralismo exacerbado, de valores distantes do evangelho. As nossas “sinagogas” estão recheadas de pessoas infladas de seus próprios egos, bajuladoras do poder, do prestígio e da tradição, fugindo por completo da originária proposta de Jesus, de caminhar lado a lado com os empobrecidos e marginalizados. Quantas “santas missas”, “missas de cura”, não são realizadas, cujo foco principal está voltado para uma devoção esvaziada de sentido, diferentes daquele Deus que ouve o clamor dos pequenos e vem até eles para libertá-los. Que nesta quaresma deixemos de lado os nossos interesses pessoais e saibamos acolher Jesus em nosso coração, para que assim o nosso agir, seja pleno de gestos concretos, na construção de um mundo mais igual, justo e fraterno!


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.