O reino da tirania

Sábado da décima sétima semana do tempo comum. O último final de semana do mês de julho, que já vai se despedindo mansamente. Vento poeira e fumaça, aqui pelas bandas do Araguaia. Enquanto lá fora as temperaturas ainda são baixas, o calor toma conta de nossos corpos por aqui. Apenas as noites são mais amenas. Oportunidade para o banho nas doces águas do Araguaia, com suas praias encantadoras. Cada ano elas se mostram em lugares diferentes, para a alegria dos nossos olhos. “Araguaia, meu Araguaia de mistério e de temor”, já nos diz o Hino da Prelazia de São Félix.

Apesar de cansado, meu sábado veio muito cedo. Depois de alguns dias fora de casa, aproveitei para acordar o dia com o sol nascendo sobre o Araguaia. Privilégio de poucos: estar em Mato Grosso e ver o sol despontar no Tocantins, rasgando a madrugada e dourando o leito do Araguaia. Tivesse eu o dom e a habilidade com os pinceis, registraria em cores a minha arte. Restou-me flagrar o encontro da noite com o dia no formato de fotografia. O encontro do sol com o Araguaia é qualquer coisa de fenomenal, despertando até mesmo o mais rude dos insensíveis. Uma dádiva do Criador. É Deus mesmo mostrando o seu rosto de pura amorosidade para com os seus. A ternura de Deus banhando as águas do Araguaia em forma de mistério e belezura.

Araguaia que me seduziu e me fez morador apaixonado por estas terras. Araguaia que me atraiu no amanhecer deste dia de hoje, quando fui rezar com o nosso bispo Pedro em seu túmulo de uma singeleza sem igual. Fui agradecer a Deus e ao nosso eterno pastor as andanças bem sucedidas que tive na segunda quinzena deste mês. Uma oração de louvor e agradecimento pelo dom maior da vida, dos amigos de sempre e das famílias que me acolhem em sincera amizade. Sou um ser privilegiado, pois posso contar com pessoas especiais no meu círculo de amizade. Ainda bem que Platão assim a definia: “A amizade é uma predisposição recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro”.

No reino da tirania, a verdade se faz objeto de interesse pessoal daqueles que atropelam a verdade, no formato de exercício do poder. Entre o Reino de Deus e o reino da tirania há um abismo infindo. Pelo menos é o que fica evidentemente claro entre o Projeto de Deus, revelado em Jesus e o reino da tirania, defendido pelo governador Herodes. Governante cruel e sanguinário, que exercia o poder no tempo de Jesus, responsável pelo assassinato de João Batista, oferecendo a cabeça deste em uma bandeja. Se em Jesus se personifica o Reino da Vida, Herodes representa o reino da morte. Duas realidades distintas convivendo lado a lado, restando aos que viviam naquela realidade o discernimento entre um e outro projeto. O Projeto de vida ou o projeto de morte.

Realidades que também vivemos nos dias atuais. Os dois projetos sobreviveram ao tempo e estão aí para nos desafiar. De um lado, o Projeto de Deus. De outro, o projeto daqueles que arquitetam a morte dos pequenos e inocentes. Somos interpelados a fazer o discernimento e escolher qual deles iremos abraçar e defender. Como bem nos propõem o Livro do Deuteronômio: “Eu lhe propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto, a vida, para que você e seus descendentes possam viver”. (Dt 30,19) A vida e a morte, a felicidade e a desgraça dependem da opção histórica que vamos fazendo ao longo da vida. Cada escolha feita, contém em si as consequências peculiares. Como dizia Pablo Neruda: “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências.

Deus é o autor da vida. O Criador, na sua amorosidade de Pai e Mãe, nos fez plenos de luz e vida abundantemente. Nosso horizonte se encaminha para a realização plena do humano que há em nós. Humano divinizado em Deus que nos escolheu por primeiro para fazer parte de seu plano cosmológico de felicidade total. Nenhum de nós nasce para viver pela metade ou pata abreviar os sonhos em morte prematura. Deus dá a vida e somente Ele nos chama de volta para fazer parte de seu projeto escatológico. O projeto de morte que tirou a vida do profeta João Batista continua tirando a vida de muitos Batistas nas noites da tirania. Os tiranos não suportam conviver com o peso da verdade e se apegam à mentira como argumento de suas falácias. Todavia, a verdade é filha do tempo, prima-irmã da razão e partidária da esperança, que nasce no jardim da utopia do fazer acontecer as coisas do Reino da vida. O banquete da vida está posto. Que venham cear aqueles e aquelas que são os defensores da vida!


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.