O sentido da pertença

Quarta feira da quinta semana da Páscoa. Uma quarta feira bastante fria para os padrões climáticos do Araguaia. O dia amanheceu sob um forte vento, dando a sensação térmica de ser o dia mais frio em pleno mês de maio. Como não estamos acostumados com o frio, as pessoas estranharam a presença dele. Apesar do clima fresco, acompanhei de perto a luta de um casal de araras azuis, que fez o seu ninho em meu quintal, expulsando veementemente outro casal de marrecos das proximidades do referido ninho. A natureza e seus melindres de autodefesa, em forma de muita tagarelice. Puseram os marrecos pra correr, ou melhor, voar.

Programei nesta manhã rezar na companhia de Pedro, mas desisti da ideia. O vento que soprava avidamente da Ilha do Bananal, me fez demover da ideia. O pequizeiro que cobre o túmulo do guerreiro provocava um burburinho nas suas galhas, fazendo cair ainda mais sua folhagem. Também as águas do Araguaia eram balançadas pelo vento, provocando os tradicionais “banzeiros”. Ondas seguidas de outras ondas, tornando a navegação das “voadeiras” um verdadeiro suplício. Navegar pelo rio nestas condições é como se estivéssemos trafegando pelas estradas de terra sobre as “costelas de vaca”. Trepida até a alma. Resolvi rezar com as araras protegendo a sua futura prole.

Mais uma vez a liturgia do dia nos faz pensar sobre o nosso ser e estar neste mundo de maneira mais cristamente consciente. Jesus, comunicador que é, com o seu linguajar acessível e sua pedagogia da inclusão, nos coloca em sintonia com a nossa missão, no seguimento de seus passos: “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós”. (Jo 15,4) Ele sabe como chegar diretamente ao coração de seus seguidores, motivando-os para o compromisso de uma fé encarnada engajada, que não seja mero sentimento intimista, desconexo da realidade e da ação transformadora. A missão do discipulado é fazer acontecer as mesmas ações desenvolvidas por Jesus. Para isso, necessário que se tenha um sentido de pertença a Ele. Qual é mesmo o sentido da pertença?

Somos ou queremos ser parte do discipulado de Jesus. O sentido de pertença ao seu grupo precisa ficar muito claro para nós. Pertença aqui entendida não como apenas de fazer parte passivamente, mas de uma interação e integração de forma ativa como co-construtores do Projeto de Deus revelado por Jesus. Para tanto, requer de todos os seus seguidores um esvaziamento das suas pretensões e interesses como fez Jesus que: “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens”. (Fil 2,6-7) Jesus que abriu mão de qualquer privilégio, tornando-se apenas uma pessoa que obedece a Deus e serve aos demais. O espírito de pertença está fortemente relacionado ao serviço, à doação aos outros.

Jesus desenvolvendo a sua pedagogia libertadora de trazer os seus seguidores para mais próximo de si e da missão a qual deverão desenvolver. Para atingir o seu objetivo, Ele utiliza a linguagem simples da videira: “Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”. (Jo 15,5). Ele os faz perceber que é necessário revestir-se do “espírito de pertença” ao grupo, comungando dos mesmos propósitos e objetivos. As primeiras comunidades cristãs souberam muito bem decifrar esta pedagogia de Jesus, como Paulo assim descreve: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles”. (At 4,32).

Pertencer ao grupo de Jesus não é fazer parte de uma instituição burocrática hierarquizada voltada sobre si mesma, mas acontece como participação na vida de Jesus no formato da comunidade cristã. Comunidade esta que vai experimentando em si a presença viva do Ressuscitado, fazendo acontecer na vida cotidiana sinais de libertação do povo sofredor. Como sinal de pertença ao grupo do discipulado de Jesus, vamos tecendo na comunidade, relações de amor fraterno solidário, construindo o Reino que começa dentro da história humana. Como pertencentes a este Jesus, cada um e cada uma de seus seguidores é chamado a testemunhá-lo na vida que se vai construindo na comunidade cristã. Como galhos da videira, os ramos vão recebendo a seiva do tronco que é o próprio Jesus em pessoa, que ali está em sintonia de amorosidade com o Pai. “Se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim”. (Jo 15,4)


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.