O tribunal do rancor

Sábado da quinta semana da quaresma. Penúltimo dia de nossa caminhada rumo à Páscoa. Nos 39 dias que fizemos ate aqui, fomos desfiados a promover em nós as mudanças necessárias, para alcançarmos a nossa conversão. Cada dia foi um passo dado, oportunizando a cada um e cada uma, a mudança no pensar, ser e agir, neste mundo à luz da Palavra de Deus, embasando a proposta do Reino de Deus trazida pelo Verbo encarnado que se fez no meio de nós. Sem a conversão não há libertação. Desprovidos do espírito humilde da conversão, somos meros cumpridores de preceitos, normas e rituais sacramentais. A fé e a espiritualidade unem as pessoas, enquanto a religião pode trazer em si a desunião.

O dia de ontem infelizmente terminou mais triste. Uma estrela a mais passou a luzir no firmamento. Perdemos uma pessoa maiúscula de nossa história de Igreja, a serviço do Reino. Morreu o jurista e ex-professor da Universidade de São Paulo – USP, Dalmo de Abreu Dallari (1931-2022), aos 90 anos de muita entrega na defesa dos Direitos Humanos. Um grande jurista que conhecia como poucos os Direitos Constitucionais. Segundo os partidários dos “Anos de Chumbo” (1964-1985), era considerado o “braço esquerdo” de Dom Paulo Evaristo, cardeal Arns. Por vários anos, esteve à frente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, combatendo o bom combate. Tal postura de coerência rendeu-lhe perseguição e um atentado às vésperas da visita do Papa João Paulo II ao Brasil, no ano de 1980. Mesmo assim, gravemente ferido, fez questão de se apresentar naquela ocasião, fazendo a leitura de um texto combativo e profético, chamando a atenção de toda a opinião mundial para os horrores da ditadura no Brasil.

Outra noticia triste que nos chegou por aqui, foi a de um vídeo mostrando um filhote de Tamanduá Bandeira, sobre o corpo de sua mamãe, morta numa das estradas de terra de nossa região. A mãe fora atropelada. Sem saber o que fazer, o pequeno filhote estava ali deitado sobre a sua progenitora. Têm ocorrido demais estas cenas por aqui, em virtude do grande desmatamento que vemos acontecer a cada mês seguido. Ainda ontem (08), segundo dados oficiais divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o desmatamento na Amazônia atingiu um novo recorde para o primeiro trimestre de 2022 (64%), em comparação ao mesmo período do ano passado.
Considerando em números, ocorreu a destruição de 941 km quadrados de floresta tropical. Estamos nos matando aos poucos, por meio de um grande suicídio coletivo, com o aval do desgoverno.

Enquanto a morte dos seres da floresta segue acontecendo, a humanidade toda segue também sendo ameaçada, mesmo que alguns dos nossos não se percebam assim atingidos. Enquanto isso, nos preparamos para viver mais uma Semana Santa, que tem o seu início neste próximo Domingo de Ramos. Chegaremos ao final dela celebrando o Tríduo Pascal, a iniciar-se na tarde/noite da quinta feira santa, culminando na Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus que se faz o Cristo vivo, presente entre nós. Como sintetizou Roberto Malvezzi: “Ele é o santo é o Filho de Maria, é o Deus de Israel, é o Filho de Davi”. https://www.youtube.com/watch?v=L_vPrH1IUwg

A liturgia de hoje nos prepara para o grande embate pelo qual Jesus haverá de passar na sua trajetória rumo à Jerusalém (Jo 11,45-56). Sua situação se complica cada vez mais, pois as lideranças religiosas que se reunião no “Sinédrio”, querem a todo custo dar um fim no projeto messiânico de Jesus. A presença do Messias ali naquele contexto sócio-histórico era uma grande ameaça às tais lideranças, que se sentiam incomodadas com os sinais de vida realizados por Jesus. A gota d’água foi a “ressurreição” de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá.” (Jo 11, 25-26). A sorte de Jesus estava lançada no tribunal da morte, no tribunal do rancor: “Não percebeis que é melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira?” (Jo 11, 50)

O Nazareno, bem supremo de Deus, sendo uma ameaça para os destinos daquela aristocracia de vendilhões. No tempo de Jesus, como nos tempos atuais, os projetos que geram vida e liberdade são intoleráveis para um sistema opressor que gera a morte: “Os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz”. (Lc 16,8). As astutas autoridades disfarçam sua hostilidade com a desculpa esfarrapada de que o bem da nação está em perigo. Apelam para a “segurança nacional”, o AI-5 da época. O Sumo Sacerdote Caifás, apresenta a solução mágica que, ironicamente, se tornou o coração sistêmico da fé cristã: Jesus morrerá por todos/as. Assassinando a Jesus, o sistema opressor denuncia a si mesmo e autodestrói, abrindo a possibilidade da vida e liberdade para todos e todas. Lá como cá, este mesmo sistema continua atentando contra vida dos pequenos, pobres e marginalizados, em nome do deus “Mamon” (cobiça, dinheiro, riqueza, posses).


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.