O último como primeiro

Uma manhã diferente no Araguaia. Depois das ultimas chuvas, um amanhecer fresquinho de tempo fechado, mais propenso à chuva. As minhas companhias desta vez, não se fizeram presentes como nos demais dias. Certamente já estão encontrando o que comer alhures nas matas, felizmente. Apenas os macacos bugios me fizeram companhia, no fundo do quintal, nas suas ruidosas cerimônias de acasalamento, aumentando a sua prole.

Mergulhei profundamente no texto da liturgia de hoje. Mais uma vez com a Comunidade Lucana. Ali, Jesus está a caminho de Jerusalém e nada o afasta do firme propósito do confronto que lá acontecerá. Segue com a sua convicção e fidelidade de que viera em primeiro lugar para atender os clamores dos deserdados e esquecidos. A classe mais lascada da Palestina de seu tempo. “Os ninguém”, ignorados pelas lideranças religiosas do templo. Uma doação concreta de vida, curando e expulsando o mal. Cabra bom este Jesus, me disse certa feita o meu amigo Deodato da comunidade São Francisco de Assis da Gameleira. Yeshua é o cara!

Apesar de receber o redado de que a sua vida corria riscos ali, o Mestre manda o recado de volta ao poderoso Herodes, que desejava matá-lo: “Ide dizer a essa raposa que eu expulso demônios e faço curas hoje e amanhã; e no terceiro dia terminarei o meu trabalho.” (Lc 13, 32) Uma fala digna dos grandes profetas da historia do povo de Israel, que não fugiam da luta, mas denunciavam com todas as letras, os projetos de morte, que ameaçava a vida dos pequenos. “Eu não fui enviado, senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. (Mt 15, 24)

A lógica de Jesus é outra, bem diferente da lógica do mundo e daqueles que arquitetam o anti-reino. A lógica de Jesus é a lógica do REINO, em que “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos.” (Mt 20, 16) Nesta compreensão, Deus é para todas as pessoas, e todos são chamados a entrar na lógica proposta de Jesus em que Deus tem uma predileção especial pelos pequenos. Aqueles que ninguém dá nada por eles. Os rejeitados da história, cujos projetos humanos os inclui e não permitem que façam parte da mesa farta das elites burguesas, cujo deus é “mamom”, o deus dinheiro, riqueza, poder, cobiça.

Rezei tendo em mente um dos livros do franciscano Leonardo Boff, “Nova Evangelização: Perspectiva dos Oprimidos.” Livro este de 1990, mas atualíssimo para pensarmos uma evangelização que responda aos anseios dos pobres, num contexto de pós-pandemia. Penso que seria urgente e necessário a sua leitura, na tentativa sintonizarmos com a realidade que estamos vivendo, sobretudo tendo os pobres, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, como protagonistas desta nova evangelização.

A “sinodaliodade” a qual nos propõe o Papa Francisco, nos convoca para uma perspectiva de evangelização, que nos coloca em sintonia com um todo, cujo desafio maior é estarmos interligados. Ou seja, cada um de nós, faz parte de um todo e este todo nos mostra que, não somos quem achamos que somos, os seres superiores, mas cada um dos que habitam a Casa Comum, tem a sua razão própria de ser no universo. Uma evangelização que seja encarnada nesta perspectiva de sinodalidade, convivendo e respeitando cada processo histórico de vida no planeta.

Num dos dados momentos do livro citado, há uma passagem muito forte e que nos serve de alerta. Ali está escrito um forte desabafo dos povos originários com a chegada do cristianismo às suas vidas: “A chegada do cristianismo foi o começo da nossa miséria, o começo do tributo, o começo da escravidão… o começo do padecimento… Cristianizaram-nos, mas nos fazem passar de um dono a outro, como animais… Eles nos ensinaram o medo. Vieram fazer as nossas flores murcharem.” Um cristianismo que, por mais que quisessem mostrar uma outra face, estava muito identificado com os interesses do colonizador que trafegava consigo na mesma embarcação.

Uma evangelização que coloque os pequenos no centro da roda e promova a sua dignidade de filhos e filhas de Deus. Uma igreja que esteja sintonizada com os sinais do tempo, que eclodem como conseqüências de uma grande pandemia. Um cristianismo que seja descolonizado e não reproduza os mesmos erros do passado. Um cristianismo, cujas ações sejam encarnadas no meio da realidade dos crucificados da pandemia, vítimas de uma economia fundamentada no mercado de capital em detrimento da vida dos últimos que são os primeiros na ótica humanista e libertadora de Jesus.