O Vírus do desamor

 

Quinta feira da quinta semana da páscoa. Seguimos a nossa rotina, orquestrados por esta pandemia maluca, que não nos deixa em paz. Como gostaríamos de acordar deste grande pesadelo que tomou conta de toda a humanidade! Voltar a uma normalidade que não tinha nada de normal, dada a nossa irresponsabilidade, na condução de nossas vidas, sem qualquer tipo de respeito ao meio em que vivemos. A cultura do descartável, nos fez exímios poluidores do meio em que vivemos. Basta ver a quantidade de lixo que produzimos a cada dia. E o pior de tudo é que o descartável passou a fazer parte também das nossas relações humanas. A pessoa é interessante para nós até o dia que ela nos é útil.

Meu coração está doendo muito. Uma tristeza toma conta de meu espírito. Não consigo viver e ser indiferente ao que está acontecendo entre nós. Algumas pessoas do nosso meio se especializaram na arte de desenvolver a cultura do desamor. Substituíram o amor, que possivelmente habitava os seus corações, pelo ante-amor. Como é possível que alguém seja capaz de festejar a morte do outro? Pelo menos foi o que vimos com a morte do artista Paulo Gustavo. Algumas pessoas comemoraram a páscoa prematura desta grande figura humana. Pessoas que não foram capazes de vivenciar, uma das máximas propostas por Paulo, em uma de suas cartas: “Alegrai-vos com os que se alegram; e chorai com os que choram.” (Rom 12, 15)

Vivemos dias difíceis! Não somente por causa da pandemia, mas porque as pessoas estão nos surpreendendo a cada dia, com sentimentos, cultivados dentro de si, e que no atual momento, estão aflorando. Não há de ver que, no final de semana passado, algumas destas pessoas, foram às ruas pedindo o perdão para as pessoas que praticaram atos de tortura durante a ditadura militar no país. Imediatamente me veio a mente o testemunho de um destes torturadores que dizia que, ao deixar a delegacia em que havia praticado tais atos, ao final de cada dia, passava na comunidade em que frequentava, participava da “Santa Missa”, comungava normalmente, e depois ia para a sua casa com a consciência mais tranquila do mundo. Comungou o corpo de um prisioneiro político, torturado até a morte.

No dia de hoje, a liturgia nos coloca diante de Jesus, ainda com o seu “discurso de despedida”. Um texto curto, mas denso de significância para nós, sobretudo diante do contexto apresentado acima: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei.” (Jo 15,9). Se antes, éramos desafiados a amar ao próximo como a nós mesmos, segundo esta perspectiva de Jesus, somos interpelados a amar o próximo como o Pai nos ama e Jesus também. Uma exigência pra lá de complicada, pois a medida do amor entre nós, passa necessariamente, pela relação que estabelecemos com Deus e com o seu Filho Jesus. “A medida do amor é o amor sem medida, sintetizou Santo Agostinho.

Além de amar o outro como a mim mesmo, princípio básico do cristianismo, agora precisamos amar o outro como Jesus nos ama, incondicionalmente. Ele nos ama tanto que nem nos chama de servos, mas de amigos. O paradigma para a vivência da fé cristã, comprometida e engajada, é a prática do amor. Assim sendo, o fruto que a comunidade é chamada a produzir é antes de tudo o amor. Seguindo nesta direção, Jesus não quer uma adesão simples de servos obedientes a um senhor, mas uma adesão livre e consciente de amigos. Nesta sua lógica, a amizade é antes de tudo um dom de Deus: Jesus de Nazaré é o amigo que dá a vida pelos amigos. Da mesma forma que a missão da comunidade não nasce da obediência cega a uma determinada lei, mas do dom livre de quem participa com alegria da tarefa comum, que é viver e testemunhar o amor de Deus que quer dar vida.

Dai percebemos o quanto estamos distantes, daquilo que nos pede Jesus. Neste sentido, sou obrigado a concordar com uma das frases ditas pelo teólogo Leonardo Boff em uma de suas entrevistas no Espaço Público: “Hoje quase todas as religiões estão doentes, doentes de fundamentalismo e aí, o atraso. Porque as pessoas ficam rígidas, não dialogam, excluem. A função principal da religião é dar aquela aura que o ser humano precisa para dar um sentido mais profundo da vida”

Amar sem medida e incondicionalmente. Talvez pudéssemos parafrasear o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1978), que num de seus escritos assim se manifestou: “A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.” Sem dúvidas de que estas são as nossas tentações cotidianas, quando não nos envolvemos de corpo e alma, tornando-nos omissos e indiferentes, frente às questões que dizem respeito a nossa caminhada neste mundo. Se amamos de verdade, a dor do outro é também a nossa dor. Dai decorre a nossa empatia ou não. Pensemos nisso.