Olhar direto

Quarta feira da 26ª semana do tempo comum. Uma manhã primaveril bem típica aqui pelas bandas do Araguaia. O dia promete ser quente como que. Logo cedo o astro rei deu a sua cara, mostrando a que veio. Na verdade, é um sol para cada um de nós. Nenhuma nuvem benfazeja se interpondo entre nós e os raios solares. Ainda bem que já estamos acostumados com este nosso clima. Bem diferente de quando aqui cheguei e me assustei com o calor saárico predominante por estas terras.

A semana que passou foi de algumas vitórias para os que acreditamos em um outro Brasil. Duas notícias nos trouxeram alento nesta perspectiva. A primeira delas é a mudança de nome de uma das ruas de São Paulo. Se antes ela se chamava rua Sérgio Freire, passou a se chamar rua Frei Tito. O torturado tendo a sua primeira vitória sobre o seu torturador, que o perseguiu cruelmente em vida, não permitindo que Tito se livrasse deste fantasma monstruoso. Lembrando que o Frei Tito de Alencar Lima, foi um frade dominicano brasileiro que foi alvo de perseguição durante a ditadura militar no Brasil, por sua participação num dos congressos da União Nacional dos Estudantes (UNE), no ano de 1968. Tito foi encontrado morto na França, em 1974, aos 28 anos de idade.

A segunda notícia boa e que vem também na mesma direção é aquela de que a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), revogou o título de Doutor Honoris Causa, concedido a Jarbas Passarinho, em 1973, um dos arautos da ditadura. A sábia decisão foi tomada pelo Conselho Universitário daquela universidade. Jarbas Gonçalves Passarinho, com toda a sua truculência, foi um dos ministros da Educação durante os anos de chumbo, sob o governo de Costa e Silva. Este senhor, foi um dos que assinaram o Ato Institucional Número 5 (AI-5), de triste memória para os opositores deste regime cruel e sanguinário da história do Brasil.

Vivemos um período obscurantista de nossa história. Cabe a cada um de nós mais lúcidos, escrever a história, passando o Brasil a limpo. Cada um de nós tem esta missão de passar às futuras gerações o caos que passou a reinar em nosso país, onde a vida segue sendo ameaçada sob vários aspectos. Evidentemente que os historiadores terão uma missão mais do que nunca necessária, de reescrever os anais críticos de um lindo país, jogado na sarjeta da história, com requinte de crueldade. Olhando-nos olhos nos olhos, temos a missão de tornar conhecida esta página de nossa história, antes que sejamos julgados pela nossa indiferença e omissão.

O Brasil encontra-se no fundo do poço. Vivemos dias difíceis e tenebrosos. É preciso revestir-nos de muita esperança e bravura, para não nos deixarmos sucumbir diante do caos reinante. A escuridão da noite que tomou conta de nosso país, faz os dias serem amargos e tristes: fome, desemprego, informalidade, insegurança alimentar, tristeza, depressão, solidão, numa total falta de perspectivas perante a este quadro. Talvez aqui tenhamos que retomar um dos versos do poeta brasileiro Thiago de Mello: “Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar.” Uma presença vigilante neste mundo cão com o qual passamos a conviver.

Olhar a realidade olhos nos olhos. Como os povos indígenas que tem o costume de conversar conosco, dissecando o nosso interior a partir de seu olhar direto dentro dos nossos olhos. É como se estivessem olhando as nossas próprias entranhas com este olhar penetrante, causando incômodo a muitos de nós que se veem diante desta situação. Para eles, nossos olhos, são a porta de entrada de nosso coração e revelam quem realmente somos na nossa essência. Com esta sua prática, temos a missão, portanto, de escrever os anais da história, elucidando os nossos principais entraves e os responsáveis por tamanha tragédia. A história nos julgará de forma impiedosa, caso não assumamos este compromisso.

“Aí vem um israelita de verdade, um homem sem falsidade”, é o que diz Jesus sobre Natanael, no texto do evangelho desta quarta-feira. (Jo 1, 47) Uma pessoa íntegra, tão difícil de ser encontrada nos dias atuais, sobretudo no campo da política, nas grandes cortes, nas instituições. Mas nem assim devemos nos desanimar e achar que tudo está perdido. Enquanto há esperança, há vontade de lutar por outro Brasil possível. Somos povo da esperança! O esperançar faz parte das nossas lutas de filhos e filhas de Paulo Freire que somos. Sem nos esquecermos de que em nossas veias, corre o dom maior da vida, como dádiva de Deus. Um Deus que é vida e não se compraz, com a morte dos seus filhos e filhas. Um Deus que é gratuidade em pessoa e muito nos ama. Ama-nos gratuitamente, projetando-nos para viver plena e integralmente. Um Deus que não se alegra com a injustiça, mas quer que a combatemos com todas as nossas forças. Por mais escura que seja a noite do Brasil, nela está contida a esperança de que no dia de amanhã congraçaremos na festa da alegria. Parafraseando Santo Agostinho: “Enquanto houver vontade de lutar haverá esperança de vencer”.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.