Falar dos povos originários é falar da sua oralidade e ancestralidade. Ambas se completam no espaçamento cultural de cada uma das etnias presentes hoje no Brasil. Para os povos indígenas o SAGRADO permeia todas as relações deste povo. Cada gesto, palavra ou detalhe de sua manifestação cultural, pontua as marcas fortes desta oralidade e ancestralidade. Sua organização humana e social é delineada pela riqueza de uma sintonia entre o sagrado e a vida cotidiana, norteadas pela ação dos anciãos. Pessoas que tem o seu lugar social de profundo respeito. Em outras palavras, a cultura possui no seu cerne a religiosidade, que é o jeito próprio deste povo, reverenciar o imanente transcendente.
Muito interessante esta forma de lidar com estes dois matizes, a ORALIDADE e a ANCESTRALIDADE. Elas se complementam numa ESPIRITUALIDADE que vai ditando a vivência de cada um, no chão sagrado da sua existência. Uma simbiose que marca a relação entre os indígenas e a sua visão do sagrado, definindo a sua COSMOGONIA e o seu jeito de ser no espaçamento da dinâmica da vida. Tudo isso regado pelo crivo da MEMÓRIA. Memória presente como expressão mais forte. Memória esta que Eduardo Galeano, num dos seus escritos manifestou assim: “Para os navegantes com vontade de vento, a memória é um porto de partida.”
As comunidades indígenas são sociedades eminentemente de TRADIÇÃO ORAL. Seus SABERES são repassados diuturnamente de geração para geração, por meio da oralidade. Todas as suas narrativas passam por esta lógica A transmissão de todos os CONHECIMENTOS/SABERES, são feitos obedecendo sempre esta forma. Assim, são povos ágrafos que tem nesta forma de viver a transmissão dos saberes, através da oralidade.
Diferentemente de nossa forma de organização de sociedade. Na nossa sociedade vemos muito presente entre nós a supremacia exercida pela ESCRITA. Ela é tida por muitos, como mais confiável que a oralidade. Mesmo que as gerações anteriores, como a minha, por exemplo, tenham vivenciado de forma muito presente a tradição oral, com os conhecimentos sendo transmitidos de geração para geração, a escrita é fundamental para esta nossa sociedade. Todavia, neste nosso modo de vida contemporâneo, sobretudo com o advento das redes sociais, perdemos em muito esta nossa tradição oral. “Estes meninos de hoje em dia não escutam”, desabafa a vovó.
A riqueza da tradição oral está muito presente na vida dos povos indígenas. Todas as vezes que estou em alguma aldeia Xavante, faço questão de participar da “reunião do Warã”. Fico impressionado e também emocionado de ver os anciãos fazerem verdadeiras conferências, através de suas narrativas. Passam horas e horas discorrendo sobre um determinado assunto, sob o olhar atento de todos os que estão ali, à sua volta. E o que ele diz tem um peso singular, nas possíveis decisões a serem tomadas. Ninguém o interrompe, até que tenha concluído a sua narrativa.
Uma das etnias brasileiras é a dos Povos Zuruahã. Um povo que vive no médio Purus (Amazonas), que viviam isolados até fins da década de 1970, ocasião de seus primeiros contatos. Este povo teve suas principais lideranças assassinadas pelos invasores de seu território. Todavia, para este povo, quem faz o contato com os ancestrais, são as lideranças. Morrendo estas, quem desempenharia tal função? Ficaram desprotegidos sem esta ligação com a sua ancestralidade. Foi aí que desenvolveram um tipo de veneno poderosíssimo, que ingeriam para assim irem ao encontro das divindades para retomar o contato com esta ancestralidade. Vários deles morreram nesta incursão. E para cada um destes que fazia esta “viagem” (suicídio), eles cortavam uma árvore. Esta trágica situação deste povo foi registrada num belíssimo filme chamado: “Zuruahã, O Povo do Veneno”. Aconselho que assistam.
Com a chegada da pandemia do Novo Coronavírus nas aldeias indígenas, estamos perdendo esta riqueza da oralidade e ancestralidade, uma vez que, centenas de anciãos estão morrendo infectados pela covid-19. Mais de 160 povos já tem mortes registradas entre si. Na verdade, com a chegada do coronavírus, uma ameaça muito grande da perda eventual de pessoas detentoras de grandes conhecimentos. Estes conhecimentos não estão registrados em documentos escritos, ou vídeos que possam ser guardados para as futuras gerações estes tais conhecimentos. Não são somente os povos indígenas que serão prejudicados com a falta destes conhecimentos tradicionais, mas toda a sociedade brasileira que perderá uma parte de sua história.