Pão em todas as mesas

Sexta feira da Segunda Semana da Páscoa. A festa é pascal, mas é também momento de reverenciar um dos grandes doutores da Igreja: Santo Anselmo. Abrimos um parêntese na Festa da Páscoa do Ressuscitado para trazer a memória de uma das testemunhas seguidoras do Ressuscitado. Como a proposta do cristianismo se fundamenta nas suas testemunhas ao longo da história, nada melhor do que refletir sobre a vida deste grande pensador medieval.

Anselmo, bispo da Cantuária e Doutor da Igreja nasceu em 1033. Viveu num dos momentos mais fecundos da Idade Média. Este período da história da Europa que ocorreu entre os séculos V e XV. Por ser um dos grandes pensadores medievais, foi considerado o “Pai da Escolástica”. Campo da Filosofia Medieval em que a junção da Filosofia Aristotélica entre a fé e a razão ganharam notoriedade para explicar os elementos teológicos. Lembrando que foi Santo Tomás de Aquino o representante maior do período escolástico da Filosofia. Anselmo foi canonizado em 1720 pelo Papa Clemente XI, cujo papado foi de 23 de Novembro de 1700 até a data da sua morte, em 1721.

Nos bons tempos de meus estudos de Teologia, aprofundei uma das temáticas defendidas por Santo Anselmo e que faz sentido fazê-la presente aqui. Trata-se do “Argumento Ontológico da existência de Deus”. Como no período medieval as correntes do pensamento vieram a tona, Anselmo se especializou em defender a tese do “Argumento Ontológico”. Para ele, Deus é o Ser do qual não se pode pensar nada que seja superior a Ele, muito menos pensá-lo como um Ser inexistente. Ou seja, recorrendo ao pensamento da Escolástica, mediada pela luz da fé e da razão, Santo Anselmo procurou provar a existência de Deus como um Ser que É. Aquilo que no Livro do Êxodo está descrito de forma muito clara: “Eu sou aquele que sou”. (Ex 3,14).

Entretanto a liturgia deste dia de hoje nos coloca diante de outra temática que tem tudo a ver com o contexto que estamos vivendo, sobretudo, a partir daquilo que nos foi proposto pela CNBB para a Campanha da Fraternidade deste ano de 2023 com o tema “Fraternidade e fome”, e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Como estamos refletindo o Evangelho de São João (Jo 6,1-15), podemos dizer que o trecho escolhido para este dia trata-se do Evangelho do amor e da partilha. Pão em todas as mesas, como preocupação maior de Jesus diante de uma multidão de famintos invisibilizados pelos judaizantes.

Estamos falando hoje de um dos “sete sinais” descritos por João, realizados por Jesus durante a sua vida pública: As bodas de Caná (2,1-12); Cura do filho de um funcionário (4,43-54); Cura do paralítico (5,1-47); Multiplicação dos pães (6,1-15); Caminhar sobre as águas (6,16-70); Cura do cego de nascença (9,1-41); Ressurreição de Lázaro (11,1-54) O capítulo seis da literatura joanina traz para nós a “Multiplicação dos pães”. Esta mesma cena aparece também nos Evangelhos Sinóticos: Marcos (Mc 6,32-44; 9,1-17), Mateus (Mt 14, 13-21) e Lucas (Lc 9,10-17).

O evangelista João começa dizendo que “Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus”. (Jo 6,4) Uma das festas mais tradicionais do judaísmo. A Páscoa judaica é uma tradição milenar que relembra a libertação do povo hebreu. (Ex 12) Ao contrário do que possamos imaginar, a Páscoa não é uma festa originária do cristianismo, mas sim do judaísmo. Desta vez, Jesus não sobe à Jerusalém para comemorar ali esta festa, mas fica na periferia: “Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades”. (Jo 6,1) Grande multidão o seguia por causa dos “sinais” que havia realizado entre os pobres. Pessoas com fome, abandonadas pelas lideranças judaicas que estavam se refestelando na festa e pouco se importavam se entre eles haviam pessoas famintas.

Jesus toma a decisão de saciar os famintos. O problema da fome é de todos e não somente de quem passa fome. É missão da comunidade ser sinal do amor generoso de Deus, através da partilha, assegurando à todos a possibilidade de subsistência e dignidade. No gesto de partilhar o pão e saciar a fome, Jesus se faz “Eucaristia”: “tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam”. (Jo 6,11) Partilha do pão como serviço e doação. Quem sabe partilhar não encontra tempo para acumular. O ato de acumular faz acontecer a falta de alimento necessário para quem passa fome. Na partilha do pão nos fazemos “Eucaristia” com Jesus, tornando-nos “Crísticos” como Ele. Uma pena que a “Eucaristia” se transformou apenas em ritual litúrgico dos templos luxuosos, enquanto a fome segue corroendo estômagos à sua volta. Que possamos viver esta experiência “Eucaristica Crística” pensando como Santo Anselmo que dizia: “Não busco compreender para crer, mas creio para compreender”.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.