Pedro e Francisco

Sábado da décima primeira semana do tempo comum. Como tenho estado melancólico nestes dias de convalescência, levantei esta manhã com o coração cheio de saudades: saudade do meu cantinho; saudade de meus afazeres; saudade do Araguaia; saudade dos indígenas com quem convivo, ao longo destes anos todos; saudade do clima alegre das aldeias; saudade de Pedro. Todos os dias recebo a ligação de um dos indígenas, e ontem não foi diferente. Com uma diferença, ontem me disseram que eles estão incluindo nos rituais, pedindo aos ancestrais que eu me recupere logo. Nesta hora não consegui conter as lágrimas. Imediatamente me veio à mente a fala do cacique Xavante Damião Pardzané, quando fui comunicar a ele que eu havia me aposentado: “Quer dizer que agora você é só nosso?”

Esse povo muito me ensinou a viver. Muito do que aprendi nas universidades por onde passei, não se compara ao que aprendi em meio aos povos indígenas. Sua forma de organização de sociedade, onde tudo é de todos. A forma de conviver com a terra, seu espaço sagrado, que provê todos os recursos necessários à sua vida. A valorização dos mais velhos como fonte de todo o saber ancestral acumulado. A total liberdade das crianças viverem, mesmo nas situações mais adversas, como brincar com as canoas no rio Araguaia. E um dos aspectos que mais me chamou a atenção, é que eles nunca, jamais, falam palavras ríspidas e agressivas com as crianças. Quando com elas vão conversar, o fazem abaixados, na mesma altura delas, pois entendem que se falarem de pé, passará por cima da criança e ela não os entenderão. Eles que são considerados por muitos de nós como selvagens.

Bateu também uma saudade muito grande de nosso bispo Pedro. Nos sábados era o dia que podíamos conversar um pouco mais, após a oração da manhã, na capela dos fundos de sua casa. Geralmente ao término da oração, prolongávamos um pouco mais as nossas conversas, quando então, versávamos sobre vários assuntos, geralmente em torno da conjuntura política, eclesial. Ele ali nos possibilitando beber um pouco mais de sua vida doada ao extremo, pelas causas do Reino. Ali não estávamos diante de um bispo com todas as suas pontas, mas simplesmente diante de Pedro, o companheiro de todas as horas. Sua vida era um testemunho vivo, de alguém que fez a opção pelo seguimento de Jesus e não se deixava trair, tamanha era a sua fidelidade e coerência. Possuía apenas o necessário para viver e nada mais.

Quando entrei pela primeira vez na casa de Pedro, lá pelos idos de 1992, quando cheguei à prelazia, vi que não estava entrando em qualquer casa, mas na casa do bispo Pedro. Não de um palácio episcopal, cheio de pompas e brocados de ouro, cheio de regras e coisa e tal, como estamos acostumados a ver por aí. Uma simples casa, por onde todos passavam. A casa do povo simples, que vinha de todas as partes, para estar alguns momentos na companhia de Pedro. E ele “perdia tempo” para estar com cada um deles, dando a devida atenção. Sempre traziam algo, para com ele compartilhar e também levava alguma coisa, que ele fazia questão de também repartir com eles. Se chegassem próximo ao horário do almoço, com certeza, não os deixariam ir embora sem que comessem um prato, daquilo que todos na casa comiam. Assim era a rotina na casa de Pedro.

Um bispo avesso ao consumismo. Se contentava apenas com o necessário para se ter uma vida muito simples. Também nos seus ornamentos litúrgicos, mostrava a sua simplicidade. Uma tónica surrada e uma das estolas que sempre ganhava de presente. Ganhava e não ficava com ela por muito tempo. A primeira oportunidade que tivesse, dava-a de presente ao primeiro padre que aparecesse. Tenho até hoje uma das estolas que me deu de presente, assim que voltou de sua viagem à Nicarágua. Havia ganhado do escritor e poeta nicaraguense Ernesto Cardenal. Somente a Tia Irene sabe a dificuldade que foi convencer a Pedro de se ter uma geladeira em casa. Só se convenceu depois que ela lhe disse que assim facilitava mais a conservação dos alimentos.

Estou vivendo dias de um autêntico preguiçoso. Era assim que Pedro se referia a si, na sua convivência com o “irmão Parkinson”. Um bispo preguiçoso. Mesmo diante da doença que o acometia e limitava suas ações, ele teve uma atitude de humildade e simplicidade. Ficávamos mais incomodados do que ele diante deste quadro. Era difícil para nós ver aquele homem, que era tão cheio de energia, estar sentado ali sem muito o que fazer. Pedro era elétrico. Não deixava nada para fazer no dia seguinte, se pudesse fazer naquele dia. Foi assim durante todo o tempo de sua vida ativa. Andei quilômetros com ele para visitar os moradores do sertão. E durante estas caminhadas eu me extasiava com as suas histórias de vida, contadas no trajeto. Como seria bom se os bispos entendessem que o ministério que receberam foi para estar a serviço do povo mais sofrido. Se encastelam em seis palácios, virando as costas para a realidade dos empobrecidos. Será que não pensam no que disse Jesus no evangelho de hoje: “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.” (Mt 6,24) Pedro soube servir aos pobres do Araguaia.
Virou o nosso profeta do Araguaia. Como Francisco de Assis, dedicou a sua vida pela causa dos pequenos, como sementes do Reino semeadas no Araguaia.