Primeira conversão (vocação) de Paulo

Leitura orante: At 9,1-19; cf. 22,5-16; 26,9-18

Três elementos fundamentais marcam a vocação de Paulo e podem ajudar-nos na revisão de nossa vivência cristã, numa perspectiva de conversão permanente e fidelidade criativa à missão. Procure refletir e rezar sobre cada um desses elementos.

1) Protagonismo de Deus – Gratuidade amorosa

Atos nos apresenta Paulo como um judeu convicto e profundamente fiel à sua formação farisaica. Persegue o cristianismo por considerá-lo uma heresia, um desvio abominável, uma ameaça ao judaísmo. Testemunha o martírio de Estêvão (At 7,58b) e devasta a Igreja (At 8,3), em nome de seu zelo apaixonado. Para exterminar os seguidores de Cristo está disposto a pagar qualquer preço, mesmo que seja o de uma viagem longa e perigosa (250 km é a distância de Jerusalém a Damasco!). No entanto, Deus estava presente na vida de Paulo. Na hora oportuna, mostra seu protagonismo, transformando aquela viagem de perseguição numa experiência de revelação e chamamento. O Ressuscitado manifesta-se na história de Paulo de uma forma envolvente, inteiramente gratuita e desconcertante. Lucas descreve de forma plástica e simbólica essa experiência singular com três elementos: uma luz … uma queda… uma voz…

A luz, na Bíblia, é sinal privilegiado de teofania. Jesus se revela a Saulo para clarear a escuridão de uma vida bitolada, de uma compreensão míope da realidade. A partir desse encontro, ele deverá aprender a olhar o mundo com um novo olhar, com uma nova sensibilidade. A queda simboliza a necessidade de uma ruptura com o passado, a urgência de o ser humano prostrar-se diante da grandeza de Deus. O Senhor Ressuscitado irrompe na vida de Saulo lançando-o por terra, ou seja, retirando-lhe as seguranças e os pontos de apoio. A voz abre perspectivas para um diálogo (escuta e resposta) que será determinante e permanente ao longo do itinerário existencial daquele que foi interpelado pelo próprio Jesus. Ele se tornará, de agora em diante, o interlocutor privilegiado de Saulo.

Diante da revelação do Ressuscitado, Saulo coloca uma das questões fundamentais da espiritualidade: “Quem és tu, Senhor?” Esta é a pergunta que acompanha nossa vida cristã e a construção de uma resposta vocacional madura. É a pergunta que nos define e nos salva. Sempre e de tantas maneiras a retomamos, sem nunca encontrar uma resposta exaustiva diante do mistério inesgotável de Deus.

Procure novamente rezar: Quem és tu, Senhor, para mim, neste momento concreto? “Meu Deus me deixa ver Deus?” (P. Casaldáliga). O que estou fazendo em minha vivência de cristão e vocacionado para desmascarar os ídolos e “deixar Deus ser Deus”? (Jon Sobrino). Mais do que saber quem é Deus importa praticá-lo. O que tenho feito para “praticar Deus”? (G. Gutierrez). Tenho tido a coragem de ir ‘mudando’ Deus, de conversão em conversão, de fé em fé, de amor em amor, de esperança em esperança? Será que não tenho “apequenado” Deus, reduzindo-o às minhas medidas egoístas e a meus interesses mesquinhos? Já superei a tentação de “seqüestrar” Deus, de manipulá-lo de forma arbitrária e caprichosa? Como Deus tem se manifestado em minha vida? Quais os sinais de sua presença em minha história pessoal?

2) Mediação da comunidade

Jesus entrou na vida de Saulo de maneira desconcertante. Lançou-o por terra e lhe fez uma pergunta inusitada: “por que me persegues?” Desta forma, o Ressuscitado se identifica com as comunidades que Saulo devastava, com os supostos inimigos que tentava eliminar. Saulo deverá fazer um longo caminho de fé para aceitar e compreender esta ‘mediação privilegiada’ da presença de Deus, que é a comunidade. Jesus o ajuda nesse itinerário de descoberta do significado da comunidade quando lhe ordena: “Levanta-te, entra na cidade, e lá te dirão o que deves fazer” (9,6). Cristo manifesta-se a Saulo fazendo-lhe perguntas e, em seguida, parece afastar-se com esta evasiva: “lá te dirão o que deves fazer”. Também em nossa experiência cristã e vocacional, o Senhor não diz tudo que ele quer de nós de uma só vez. Ao contrário, convida- nos a ir descobrindo, progressivamente, sua vontade e seu projeto, contando com o apoio da comunidade e confrontando-nos com ela. Aliás, a comunidade de Damasco, para a qual Saulo se dirigia como perseguidor, será interpelada a acolhê-lo como irmão. A função de ir ao encontro de Saulo é confiada a Ananias, cujas resistências o próprio Ressuscitado encarrega-se de vencer. Aquele que Ananias considera como perseguidor, aos olhos de Jesus é “instrumento de eleição”. São impressionantes a coragem de Ananias e a conversão pessoal que lhe permitem chegar a Saulo chamando-o “meu irmão”. Lucas retrata, desta maneira, o valor da dimensão fraterna na vida comunitária. A fraternidade é condição de possibilidade para o plano de Deus acontecer. Qual a pergunta que Jesus me dirige hoje, neste momento concreto da minha existência?Estou aberto para acolher sua presença e sua maneira desconcertante de agir?

“Lá (= na comunidade) te dirão o que deves fazer”. O encontro com Cristo empurrou Saulo para a descoberta e valorização da vida comunitária. Dali em diante não poderá mais agir por conta própria nem caminhar sozinho. Invertem-se os papéis: o líder da expedição será conduzido até a cidade pelas mãos de seus liderados (9,8). Saulo já não será mais o delegado plenipotenciário das sinagogas, mas simplesmente um irmão, conquistado por Cristo e acolhido como tal por Ananias.

Em clima de revisão, procure rezar sua vivência comunitária: o que você tem feito para valorizar a comunidade como lugar de experiência da presença do Ressuscitado? Será que o encontro com Cristo, sobretudo na Eucaristia, tem ajudado você a aprofundar a dimensão fraterna da vida na partilha, presença, solidariedade, serviço? Você trata os membros de sua família e comunidade como irmãos ou como perseguidores (possíveis adversários ou inimigos)? Na vivência comunitária você tem sido barreira ou ponte? Quem tem desempenhado o papel de Ananias junto de você? (Lembre os nomes e agradeça…) Para quem você tem sido Ananias?

3) Resposta pessoal – gratidão empenhada:

Diante da manifestação do Ressuscitado, que lhe veio ao encontro, Saulo sente a necessidade de dar a sua resposta pessoal, reconhecendo o amor de Deus e assumindo seu compromisso: “Que devo fazer, Senhor?” (At 22,10). Na história de Saulo, há o antes e o depois da experiência no caminho de Damasco. Desmoronou o mundo em que ele vivia. A primeira impressão é de uma ruptura total. Abandona seu projeto de vida, a observância escrupulosa da lei judaica e certos princípios que havia aprendido durante sete anos, aos pés do mestre Gamaliel e que cultivara ao longo dos seus quase 28 anos de vida. A luz da visão do Ressuscitado deixou Saulo cego: “embora tivesse os olhos abertos não via nada” (At 9,8). Através desse paradoxo, Lucas quer mostrar a necessidade de se aprender a enxergar a realidade de outra maneira, com o olhar transfigurado da fé. Saulo olhava o mundo a partir das convicções (e preconceitos) de sua formação farisaica. Depois de três dias na escuridão, vai brilhar para ele uma nova luz e passará a ver as coisas em profundidade, com o olhar contemplativo de quem acredita no Senhor Ressuscitado e, por isso, vence as barreiras do preconceito e da superficialidade. Superado o período de provação, simbolizado pelas escamas que lhe caem dos olhos, Saulo cria um novo e definitivo vínculo, agora com Jesus Cristo: recebe o batismo, toma um alimento (possível alusão à Eucaristia) e sente-se reconfortado (cf. 9,18-19). Pensa já estar preparado para a missão: “imediatamente, nas sinagogas, começou a proclamar Jesus, afirmando que é o Filho de Deus” (9,20).

A exemplo de Saulo, também nossa vocação exige a dinâmica da ruptura e da criação de novos vínculos. Procure refletir: quais as rupturas que ainda estão sendo necessárias, atualmente, para eu continuar fiel ao chamado? Quais os empecilhos que não me permitem ser mais livre para a doação da minha vida na missão? Tenho sido generoso e criativo na vivência do meu vínculo de aliança amorosa com o Senhor? Minha resposta vocacional a Deus tem sido, efetivamente, a expressão de uma ‘gratidão empenhada’ para com Aquele que me chamou a viver em sua intimidade? “A vocação autêntica nasce no terreno fecundo da gratidão” (A. Cencini). Só é capaz de uma plena oblatividade quem verdadeiramente se sente amado por Deus. Na intimidade com o Senhor, procure experimentar a presença desse Amor maior em sua vida. Peça a graça de ser confirmado, neste retiro, como amigo e discípulo.