Quem matou a vida?

Sábado da décima primeira semana do tempo comum. Chegamos a mais um final de semana, ainda tecendo e debulhando o nosso rosário de dor. Uma flecha de dor transpassa a nossa alma. A morte é uma incógnita, quando ela nos chega por um processo natural. É o fim de todos nós, fazer a experiência da semente que sai de cena para que dela renasça a vida em forma de flores e frutos. Quando a morte é prematura e planejada intencionalmente, causa repulsa, indignação e revolta aos mais sensíveis aos que lutamos em favor da vida, humana e dos demais seres do planeta, quiçá fazendo nossas as palavras do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935): “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.

Fomos pensados e criados por Deus para viver intensamente. Vida longa Ele projetou para nós. A abreviação prematura da vida faz parte de um tipo de sociedade, fundamentada na desigualdade, na exclusão e no não apreço pela vida humana e dos demais seres. Isaías, no Antigo Testamento já profetizara: “Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a completar seus dias, pois será ainda jovem quem morrer com cem anos”. (Is 65,20), Deus nos dá a vida gratuitamente. Uma vida de paz, harmonia e alegria. A ninguém é dado o direito de tirar a vida de quem quer que seja. Ninguém!

Matar a vida é matar o sonho. É romper o projeto amoroso de Deus, desenhado em cada um de nós, plasmado em nosso âmago. Matar a vida é matar sonho de Deus sonhado nas entrelinhas de nossa história. É interromper o caminhar em direção ao infinito de nossas realizações humanas e transcendentais. É abortar a utopia crível de nosso caminhar rumo ao espaço ancião, quando o caminhar trôpego da senioridade carregam nos ombros a criança, o adolescente e ancião que ainda somos. Anos luz de experiência de vida. Sabedoria acumulada. É por este motivo que os indígenas afirmam que, quando morre um ancião é uma biblioteca que deixa de existir. Bom para os ancestrais que podem contar com mais um entre eles.

Mataram a vida que havia em Dom e Bruno. Vidas cheias de vida. Dom, jornalista dos bons, descrevendo as mazelas dos povos originários, sob o julgo do latifúndio transvestido de marginalidade; mataram também a vida de Bruno, defensor primeiro das causas indígenas, convivendo, defendendo e falando fluentemente a língua deles. Como nosso bispo Pedro, fez das causas ambientais e indígenas, mais importantes que a sua própria vida. Morreu defendendo aqueles com os quais construiu o seu projeto de vida. Vida, pelas vidas! Os ancestrais da floresta já o acolheram em sua morada sagrada.

Mataram a vida inocente em solo sagrado amazônico. Os ancestrais estão de luto. Como nas favelas, as balas perdidas só encontram os corpos negros periféricos. Nunca os corpos brancos dos “jardins”. A eficiência que faltou na proteção das vidas, se apressou em concluir que “não houve “mandantes” por detrás do bárbaro crime contra Dom e Bruno. Uma necessidade premente em concluir rapidamente a investigação. De saber que os corpos só foram encontrados com a ajuda dos indígenas. Fica uma dúvida no ar: ou são exímios investigadores, ou trazemos na testa o letreiro de idiotas que querem fazer de nós para acreditarmos neste jogo de cena.

Nosso grito é uníssono numa mesma direção: justiça! A vida pede socorro e merece respeito. Tem que ser valorizada. Dividir-nos nas nossas ações e encaminhamentos é enfraquecer a nossa luta. Como Jesus mesmo nos alerta no Evangelho de Mateus, que meditamos hoje na liturgia: “Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. (Mt 6,24) Como fazemos parte da grande família dos filhos e filhas de Deus, estamos indo na mesma direção e não podemos nos dividir, fracionar nos nossos objetivos. “Quem não está comigo, está contra mim; e aquele que comigo não colhe, espalha” (Mt 12,30), já nos advertira Jesus.

Escolher pela vida é abraçar o dom de viver. E viver intensamente! Quem é da morte não é pela vida. Escolher a morte é rejeitar a própria vida. É rejeitar o sonho de Deus. Quem matou a vida? Quem matou afinal? Alguém matou a vida. Alguém pequeno aparecendo na cena do crime, fato. O ato de serem protagonistas da ação criminosa não significa que estejam sozinhos, uma vez que muitos interesses estavam em jogo em meio ao conflito. Muitas mãos estão ensanguentadas com o sangue de Dom e Bruno. Muitos outros mais também trazem em suas consciências o sangue inocente destas vidas perdidas, uma vez que, ou são coniventes, ou apoiam as atrocidades de quem às patrocinam.


Francisco Carlos Machado Alves conhecido como Chico Machado, foi da Congregação do Santíssimo Redentor, os Redentorista, da província de São Paulo. Reside em São Felix do Araguaia no Mato Grosso e é agente de Pastoral na Prelazia de São Felix desde 1992. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Karajá, dentre outros. Mestre em Educação atua na formação continuada de professores Indígenas, nas escolas das respectivas aldeias.