Questões fundamentais da existência humana

 

Na Liturgia deste III Domingo da Páscoa, vemos, na 1a Leitura (At 3, 13-15.17-19), que, em nome de Jesus, Pedro faz andar um paralítico. Isso mostra que Jesus está vivo e continua a agir; é, pois, sinal que o Pai o ressuscitou. Pedro testemunha Jesus com palavras e gestos e faz um apelo ao arrependimento e à conversão para o perdão dos pecados. A partir deste texto, ficam as seguintes questões: Quem é perigo para a sociedade: Jesus? As autoridades políticas que agiram por interesses? O povo que agiu por ignorância e preconceito?

Na 2ª Leitura (1Jo 2,1-5a), vemos que Jesus é o advogado, o auxílio, o intercessor nosso junto ao Pai, e o é porque é vítima de expiação por todos. Essa verdade exige de cada um de nós uma atitude de conversão e de engajamento numa vida de amor que se realiza na observância dos mandamentos.

No Evangelho (Lc 24,35-48), Jesus nos anuncia a paz: “A paz esteja convosco”, paz que significa a tranquilidade da ordem, harmonia consigo, com o outro, com a natureza e com Deus. Diante disso, fica a questão: Que soluções damos aos problemas existenciais? A reflexão é um pouco longa, mas, quem puder, penso que vale a pena.

 

Questões Fundamentais da Existência Humana

De onde vim? Para que existo? Que sentido tem a vida? Para onde vou?

O modo de ser no mundo se constrói na medida em que a vida é organizada em quatro direções ou relações fundamentais de todo ser humano: o eu (si mesmo), o nós (o outro), o mundo (a natureza) e o transcendente (o infinito). Vejamos.

 

1º – O “Eu” (si mesmo)

Já construímos muitas referências sobre nós mesmos: antropologia, psicologia, medicina e outras ciências. Mas sabemos quem somos? Sabemos muito sobre nós mesmos? Continuamos incógnitos, mistério. Solucionamos nossos problemas existenciais: medos, angústias, depressão etc.?

Somos seres individuais, somos pessoa humana. Pessoa é o indivíduo humano desde que nasce e por toda sua vida, independentemente de circunstâncias “A pessoa é o que há de mais perfeito em toda a natureza” (São Tomás de Aquino). Pessoa (persona, máscara, mistério) difere de indivíduo (individuus: significa o que não pode ser dividido logicamente, é o ser concreto, básico, de qualquer espécie. Ex: é este cão, esta flor, esta mesa…, no sentido de que o indivíduo é uma unidade de qualquer tipo: irracional, inanimado etc.); pessoa é o indivíduo racional, humano, é o indivíduo mais marcado pela individualidade, pois toda pessoa tem sua profundidade e seu mistério inconfundíveis.

Somos seres marcados pela individualidade, não temos preço, temos dignidade, fazemos a diferença no universo. Não podemos nos massificar (todo mundo pensando igual), não fomos criados em série, nos diferenciamos dos animais que comem, bebem, dormem e se reproduzem sempre da mesma forma. O ser humano tem consciência, sabe que sabe.

2º – O “Nós” (o outro)

Já construímos muitas referências sobre as relações sociais. Quanto mais sabemos, menos sabemos: Só sei que nada sei, e o fato de saber isso, me coloca em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa” (Sócrates, In Platão, Apologia 21d).

Somos mergulhados numa sociedade: família, escola, igreja, clube, empresa, política etc. Somos sociais por natureza, o ser humano é o único animal que não sobrevive sem a comunidade. Para desenvolver sua virtualidade e adquirir personalidade, o ser humano precisa de contato com os seus semelhantes; é isto o fundamento natural da vida do homem em sociedade. O homem é um ser social por essência, não vive sem o outro. Ex: até na sua anatomia, sexualidade (estrutura biológica) a pessoa necessita se abrir para o outro. Os animais sobrevivem mais facilmente. A pessoa é adestrada para a vida, herdeira de seus genitores e das gerações de seus antepassados.

A teologia ressalta aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo animal e vegetal, insatisfação que somente acaba com a aparição da mulher, com a qual o homem pode ter um diálogo interpessoal, diálogo entre dois espíritos possuidores do mesmo espírito de Deus. No outro, o homem vê Deus, e este é o fundamento da igualdade e do amor (ágape) entre os seres humanos, que não estarão diferenciados em raça, língua e direitos.

O conceito de pessoa como ser dotado de dignidade e ser relacional-social obriga a comunidade humana a construir relações orgânicas, harmoniosas e mútuas entre os homens. A Doutrina Social nasce exatamente dessa obrigação. Aquilo que se opõe à harmonia, à justiça, à igualdade e à liberdade é, filosoficamente, um mal social, uma agressão ao próximo. Um mal que a teologia chama ‘pecado social’ (Ver Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 110-125; 566).

Sabemos viver com os outros? E as guerras, as favelas, a fome etc.? “O inferno são os outros” (Sartre). Sabemos viver com os diferentes de raça, gênero, condição social, diversidade sexual? Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo (Voltaire, In Os amigos de Voltaire).

 

A organização da sociedade deverá ter por finalidade o bem-estar da pessoa humana

A finalidade da Doutrina Social da Igreja (DSI) é sempre a promoção e a libertação total da pessoa humana, em sua dimensão terrena e transcendente. O coração e a alma da DSI é a pessoa humana, porque a sua dignidade funda-se no fato de que ela foi criada à imagem e semelhança de Deus e elevada a um fim sobrenatural que transcende a vida terrena.

O objeto da DSI é a sociedade humana. Porque nela está presente o princípio da natureza social e a dignidade humana. As coisas, os bens materiais, as estruturas sociais, as próprias leis existem em função do bem das pessoas. O fim da sociedade é a realização de todos os seres humanos, colaborando uns com os outros. A pessoa humana é “autor, centro e fim” de toda vida econômica, social e política: “Uma vez que a pessoa humana, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo acrescentado ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças à interação com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus irmãos” (GS, 25).

As condições de vida em qualquer meio social dependem, fundamentalmente, da estima que se faz da pessoa que nela está imersa, do quanto se preocupa com o que ela come, veste, por onde anda, em que trabalha e que dignidade tem em seu serviço. Assim também, da forma como ela pode se expressar, agir, viver etc. Sendo observados todos esses elementos, a qualidade de vida do ser humano deve melhorar, pois a ele será dado valor digno.

Por estes e outros fatores, surgem várias questões filosóficas, sociais, culturais, religiosas e políticas, todas convergindo para o mesmo ponto: o valor que se dá e se faz da dignidade da pessoa humana. Hoje, há uma tendência em se falar muito disso, em se arrumar inúmeras soluções para o problema da humanidade, ou mesmo considerá-la como problema. E, dentro de tudo isso, o importante é considerar o ser humano como sujeito de seu processo histórico, autor e protagonista de sua própria peça em que encenam uns e outros, lado a lado, como aqueles por quem se faz um mundo melhor, pautado na dignidade e em todos os benefícios que dela emanam.

 

3º – O mundo (a natureza, o cosmos, casa, planeta)

Apesar do muito conhecimento sobre a natureza, ainda sabemos pouco. Galileu Galilei já dizia: “O mundo é um livro aberto em códigos matemáticos”, ou “A Matemática é o alfabeto que Deus usou para escrever o Universo”.

Para Popper, “a nossa ignorância é estratosférica. Quanto mais aprendemos sobre o mundo, quanto mais profundo o nosso conhecimento, mais específico, consistente e articulado será o nosso conhecimento do que ignoramos – o conhecimento da nossa ignorância. Essa, com efeito, é a principal fonte da nossa ignorância: o facto de que o nosso conhecimento só pode ser finito, mas a nossa ignorância deve necessariamente ser infinita. (…) Vale a pena lembrar que, embora haja uma vasta diferença entre nós no que diz respeito aos fragmentos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorância” (Karl Popper, in As Origens do Conhecimento e da Ignorância).

Para Leibniz “vivemos no melhor dos mundos possíveis. Estamos no melhor dos mundos possíveis, o ser só é, só existe, porque é o melhor possível. A perfeição de Deus garante essa vantagem. Deus escolheu, dentre os mundos possíveis, o que melhor espelhava sua perfeição. Ele escolheu esse mundo por uma necessidade moral. Mas se esse mundo é tão bom, porque existe o mal?

 

Na Teodiceia, Leibniz identifica três tipos de mal: 

1) O mal metafísico, que deriva da finitude do que não é Deus 

2) O mal moral, que advém do homem, não de Deus. É o pecado. 

3) O mal físico. Deus o faz para evitar males maiores, para corrigir” (Cf. Leibniz, In ‘Discurso de Metafísica – Os mundos possíveis e as mônadas=forças em atividades).

Como está nosso planeta? Que legado deixaremos para os povos futuros?

Somos seres individuais, mergulhados numa sociedade, dependentes de uma natureza para viver, mas limitados e abertos ao infinito. Nascemos biologicamente homens, mas nos tornamos culturalmente homens.

4º – O transcendente (o infinito)

Somos seres finitos e a única certeza que temos é que vamos morrer, então temos que dar um significado a nossa existência. Para algumas pessoas, a “vida vai do nascer ao morrer” (Sartre), isto é, o ser humano é somente matéria.

Para outros, “Deus está morto, O Homem Louco – […] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – Também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos, nós mesmos, nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então” (Nietzsche, Gaia Ciência, §125).

Vivemos um grande niilismo (um nada), um esvaziamento do ser humano, por isso somos fragilizados e, nisso, entram os grandes aproveitadores e os sucessos das ‘pseudas’ religiões mediáticas. Vivemos com uma grande carência de referências e com a frieza do mundo tecnológico e mercantilista, alguns falam de cultura líquida. Em muitos casos, há uma grande desilusão e o desespero toma conta do ser humano.

Frente a esse esvaziamento do ser humano, a própria ONU, por meio da UNESCO, nos orienta nos seguintes princípios;

– Resgatar a cultura da afetividade;

– Resgatar a cultura da sensibilidade, do altruísmo;

– Resgatar a cultura da transcendência;

– Resgatar a cultura do conhecimento solidário, não validar somente a razão instrumental.

Frente a esse esvaziamento do ser humano, podemos confrontar a esperança cristã que nos ajudará a atingir a maturidade e viver com dignidade.

Para a Doutrina Cristã, o conceito de dignidade humana contém uma espessura ontológica: o homem é ontologicamente superior e mais digno do que os outros viventes na terra. O homem possui uma dignidade particular oferecida pela Divindade Criadora que não visa, em primeiro plano, resultados econômicos ou científicos, mas unicamente o bem da Pessoa Humana. Com isso, a pessoa torna-se teomórfica e, por consequência, digna (Compêndio da DSI, 132).

Nas correntes de pensamento que reconhecem um elemento espiritual no mundo, argumenta-se que a pessoa é particularmente digna porque detém capacidades que escapam à matéria, a intelecção abstrativa, a vontade livre não sujeita às leis físicas, a autocompreensão, a autoposse, a autodeterminação. Essas qualidades especificamente humanas estão voltadas para engendrar entidades imateriais (os conceitos, por exemplo) mediante uma atividade imaterial (o ato de abstrair). Uma atividade imaterial deve depender de algum agente imaterial, que se chama alma espiritual. A alma espiritual, por não ser composta de partes materiais, na morte, não fica decomposta e é, por isso, imortal. Por ser uma conjugação de matéria e alma espiritual, o homem é Pessoa. O conceito de Personalidade traz em si o conceito de imortalidade, porque a alma não morre e seria absurdo pensar que a pessoa simplesmente desaparece na morte. A pessoa, como “unidade de corpo e alma”, possui um destino imortal, diferentemente das outras entidades apenas materiais. Dessa diferença ontológica e desse destino imortal deriva uma conceituação substancial da dignidade da pessoa humana.

Afirmar a dignidade da pessoa é entrar em conflito com os princípios, tanto do capitalismo, como do socialismo e até mesmo da democracia (vontade da maioria). O fundamento e o divisor entre a dignidade das coisas e a dignidade superior do homem ficam sacramentados na autoridade da Revelação: “Adão não encontrava no mundo vegetal e animal algo que lhe fosse parecido” (Gn 2, 20), quando Deus, após ter criado estrelas, plantas e animais, dá uma parada e quase esboça preparativos especiais para fazer algo diverso: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança” (Gn, 1,26). Nasce uma entidade teomórfica superior ao teomorfismo do mundo: é o homem, e nisso reside a sua dignidade. “O cristianismo vê no homem, em cada homem, a imagem vivente do próprio Deus” (Compêndio da DSI, 105).

“O personalismo do Compêndio, inspirado também na filosofia personalista e comunitária de Emmanuel Mounier, está sendo chamado ‘manifesto de um novo humanismo’ contra as tendências utilitaristas, sincréticas e individualistas da modernidade racionalista, que mostra uma impotência surpreendente ante as angústias sociais e internacionais do planeta” (Para aprofundar este conteúdo ver: Doutrina social e universidade: o cristianismo desafiado a construir cidadania. João D. Passos, Afonso M. L. Soares (orgs.) – São Paulo: Paulinas; 2007, p. 169ss).

Hoje, fala-se muito de bioética e pessoa, mas, sem um conceito de pessoa definido, ficar-se-á na ética do “pode e não pode” a respeito de quase todos os avanços da genética humana; ou, noutra hipótese, repetir-se-á o argumento da autoridade. Da definição de pessoa decorre, diretamente, uma segunda questão: Em que momento a existência humana é definida e aceita como pessoa? No momento da concepção? Na implantação do zigoto no útero? No momento do nascimento com vida? Estas questões fundamentais interessam diretamente à filosofia, à ética, ao direito, à teologia e a política que estabelece leis, por exemplo, sobre o aborto e o uso de células-tronco para pesquisa científica. O valor e a dignidade do ser humano receberam enfoques diferentes, conforme o ângulo de observação adotado por muitos pensadores ao longo do tempo.

Sabemos que, hoje, a vida e o ambiente estão cada vez mais dominados pela ciência, pela biotecnologia e explorados pelas políticas consumistas. A bioética destaca a preocupação com os animais, com os vegetais e com a preservação da natureza, mas a preocupação é, sobretudo, com a vida humana, com o cuidado das condições sociais da vida humana: milhões de seres humanos vivem em más condições de saúde, educação e habitação por falta de políticas justas. A bioética se ocupa especialmente da relação da vida humana com os recentes avanços da ciência, do mapeamento do genoma, do estudo científico com células-tronco, das novas modalidades de intervenção científica nos fetos e embriões e, na outra ponta da vida, das pessoas que pedem a eutanásia ou, ao inverso, o prolongamento da vida por tempo indefinido, a distanásia.

Definição teológica de pessoa

Os pensadores cristãos da Idade Média, por volta do século XI, foram além da definição metafísica, entenderam que a racionalidade é espiritual e que, sendo simples (que é indivisível, que não pode ser decomposta, que não tem partes) é imortal. Mas, sendo a alma espírito, não pode proceder da physis (designa a realidade material, concreta, objeto de nossos sentidos. É também a ciência da natureza numa tentativa de explicar o mundo material através de causas naturais e da existência de elementos primordiais, que seriam os princípios explicativos de toda a realidade), não pode ser gerada pelas energias biológicas dos pais, então, só pode ser criada diretamente por Deus, no momento da concepção. Portanto, na definição teológica, a pessoa é o indivíduo subsistente na natureza racional criada por Deus.

Esta concepção teológica atravessou séculos sem alterações importantes, é, ainda hoje, a base do valor e da dignidade que atribuímos ao ser humano. A Igreja católica se apoia nesta teoria para avaliar como eticamente inaceitáveis o aborto, a pesquisa com células-tronco embrionárias e a eutanásia, por serem práticas que interferem no domínio restrito ao poder divino: Deus dá a vida; só a Ele cabe tirá-la. Ao homem incumbe cuidá-la como o mais precioso dom divino. Esta tese defende, portanto, a sacralidade da vida à qual as teorias seculares da bioética opõem a qualidade de vida. Na verdade, sacralidade e qualidade de vida são conceitos complementares porque, na visão da fé, todas as realidades terrestres são também marcadas pela referência ao Criador.

Boa reflexão e que possamos produzir muitos frutos para o Reino de Deus.