Radicalidade e Fanatismo
(chico Machado)
“Onipotente e bom Senhor. A ti a honra, glória e louvor! Todas as bênçãos de ti nos vêm E todo o povo te diz: amém!” Acordei nesta manhã rezando com esta preciosidade que nos foi dada pelo amigo, companheiro de caminhada, Zé Vicente. Esta sua canção já é uma oração em si. Enquanto a ouvia, dialogava com o meu Deus, numa atitude de profundo agradecimento pelo dom da vida. Entre uma prece e outra, lembrei-me que Pedro tinha grande admiração pelo Zé. Frequentemente dizia que Zé Vicente era o menestrel por excelência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Esteve em nossa 6ª Romaria dos Mártires da Caminhada, em 2016, cantando e encantando.
Sou filho das CEBs, com muita honra. Tive a grata felicidade de vivenciar a minha experiência religiosa no período histórico, em que este jeito de “ser igreja”, estava na sua efervescência. De mãos dadas com a Teologia da Libertação, ambas caminhavam lado a lado, desbravando o Continente Latino Americano, na luta pela libertação de todas as formas de opressão. Uma Igreja viva e atuante, celebrando a vida, a luta e o jeito militante pelas causas do Reino. Era eu um jovem estudante de teologia, mas embrenhei-me por esta estrada, sem medo de ser feliz. Uma Igreja que espelhava em si o jeito de Jesus de Nazaré, caminhar entre os seus na Palestina de seu tempo histórico.
Assim que pisei o chão da Prelazia de São Félix do Araguaia (1992), senti que aquela não era uma Igreja qualquer, mas a Igreja sonhada e arquitetada pelo seu pastor, Pedro Casaldáliga. Para mim não foi surpresa alguma, perceber que aquela igreja, pulsava no mesmo ritmo e compasso das CEBs, alicerçada pela Teologia da Libertação. Neste sentido, Pedro não tinha dificuldade alguma em afirmar que, “ou a teologia é da libertação ou então não é teologia de Jesus de Nazaré.” Identifiquei e me encaixei como uma luva neste jeito de ser Igreja, povo de Deus em caminhada. Tudo o que eu mais queria, como jovem sacerdote.
Passados alguns anos e a Igreja, de modo geral, passou por grandes transformações. As Comunidades Eclesiais de Base, passaram a ser marginalizadas, dentro da própria Igreja, que se voltou mais para as estruturas burocráticas e enfadonhas da “paroquialização”. Aqui ali ainda se vê as experiências de CEBs, mas rotuladas como pertencentes a setores esquerdistas, comunistas, ligados a “turma dos Direitos Humanos”. Estes que assim enxergam tais comunidades, fazem uma leitura, pra lá de equivocada do Projeto Messiânico do Jesus Histórico. Falta-lhes também uma leitura mais atenta, dos documentos escritos por ocasião das Conferências Episcopais Latino americanas: Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingos (1992)…
Todavia, vivemos hoje um grande dilema em nossa Igreja. Parte dela foi tomada de assalto por grupos neopentecostais, que possuem uma hermenêutica própria de vivenciar o seu jeito de ser Igreja. A radicalidade evangélica, vivida por alguns de nossos padres e bispos, religiosos e religiosas, deu lugar ao fanatismo religioso ultraconservador, com perseguições homéricas àqueles que levantam a voz para denunciar os desmandos, a supressão de direitos e as milhares de mortes prematuras. Como no caso de um dos padres, que ao terminar a celebração eucarística, foi cercado por algumas pessoas, ainda na sacristia, sendo intimidado por ter sido profeticamente crítico em sua homilia.
“O retrocesso político brasileiro está ligado a retrocessos teológicos. O discurso ‘não misturar fé com política’, serviu para dar poder ao pior da religião”, afirma Dom Vicente Ferreira, bispo auxiliar da arquidiocese de Belo Horizonte. Tempos obscuros! Vivemos hoje uma grande manifestação do fanatismo religioso. Pessoas que se apoderaram da “verdade” e assim ditam as normas, de como deve se viver à luz da Palavra de Deus. Quem não se enquadra nesta lógica, está fora, segundo estes detentores desta verdade absoluta sobre Deus. Sobres estes, Jesus um dia assim se manifestou: “Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros das pessoas. No entanto, eles próprios não se dispõem a levantar um só dedo para movê-los.” (Mt 23,4)
Radicalidade não é a mesma coisa que fanatismo. Aqui pode estar havendo uma confusão semântica. Etimologicamente, a radicalidade é a prerrogativa daquele que vai à fonte e procura embeber-se dela, contextualizando a sua vida, a partir dos valores que dela brotam. O fanatismo trata de fazer uma interpretação dos valores que advém da fonte, às vezes para sustentar os interesses seus e de classe. Para entender a proposta de Jesus, nada melhor que fazer a leitura do texto a partir do contexto próprio da época, aquilo que em teologia chamamos de “Sitz im leben”. Ler o texto a partir de seu contexto, afinal, texto fora do contexto, é mero pretexto, para justificar interesses outros.