Reflexos da casa grande

Meu coração entristecido começa um novo dia. Um dia não muito diferente dos demais. Não suporto a dor que sinto na minha alma, de saber que mais indígenas estão descendo à sepultura. Agora são os TAPIRAPÉ que também tem o vírus presente em suas aldeias. Todo o cuidado que tiveram, não foi suficiente para evitar a contaminação. Uma BIBLIOTECA VIVA deste povo já sofrido, deixou-nos nesta semana. Lourenço partiu com toda a sua sabedoria e os seus mais de 80 anos. A matriarca de mais idade, que foi internada junto com consigo, recebeu alta e voltou para, casa, felizmente.

Neste momento em que as mortes seguem acontecendo nas aldeias indígenas, o inominável, sancionou ontem, com vetos, a lei 14.021, que prevê medidas de proteção social para prevenção do contágio e disseminação da covid-19 em territórios indígenas e quilombolas. A referida lei foi sancionada com vários vetos ao projeto original, entre eles, a obrigação do governo de oferecer ÁGUA POTÁVEL, oferta emergencial de LEITOS HOSPITALARES e facilitar o acesso desses povos ao AUXÍLIO EMERGENCIAL, dentre outros vetos.

Fico me perguntando, o que passa na cabeça de uma pessoa como esta? O que passa na cabeça de dezenas de pessoas que ainda conseguem ver neste ser, alguém que ainda pensa no bem estar daqueles para os quais deveria governar? A nossa paciência já chegou ao limite, ao ver tanto desprezo por um povo que se sente completamente vulnerável a uma doença CRUEL e IMPIEDOSA. Não consigo perceber que tal pessoa, tem algum tipo de sentimento pelo povo, pobre, preto, favelado, quilombola, indígena e povos tradicionais. É muito desprezo pelo ser humano, sobretudo pelos mais vulneráveis, que não possui atendimento de primeira qualidade, e uma equipe médica de prontidão para o seu atendimento.

Estamos a mercê da própria sorte. Inseguros, incertos e com os nervos a flor da pele. Desprotegidos por quem deveria, ao menos, se preparar para um atendimento especializado e diferenciado aos povos originários. Tudo o que vemos são profissionais de saúde sem ter muito que fazer na proteção aos indígenas na atenção básica. Faltam leitos hospitalares para colher estes povos e falta também da parte do governo, maior sensibilidade à causa destes povos. Mas, pelo visto, quanto mais morrerem, melhor fica. São números nas estatísticas.

São os reflexos da Casa Grande, presentes entre nós. O senhor de escravos, o capitão do mato, reproduz em pleno século XXI, as regras do que foi a relação entre a Casa Grande e a Senzala, no período colonial brasileiro. O todo poderoso senhorzinho, sente-se no direito de vetar questões básicas e cruciais para o atendimento àqueles que estão morrendo. E o mais cruel é saber que, os que estão à sua volta, nem sequer esboçam qualquer tipo de indignação perante a barbárie.

“Socorre-nos, ó Deus salvador nosso, pela honra do teu nome! (Sl 79, 9), rezamos no salmo da liturgia de hoje. Somente Deus para nos proteger-nos de tamanha indiferença e desumanidade, frente à morte de nosso povo. Um governante que não tem sensibilidade alguma, incapaz de sentir e abrir o seu coração à dor alheia. Um homem com o coração de pedra, que só pensa em armas, mortes, torturas, e aniquilamento. Um ser incorrigível e mal assessorado pela tropa de choque de pessoas vis de mesmo nível. Para estes, resta-nos fazer como fez o profeta Ezequiel: “Darei para vocês um coração novo, e colocarei um espírito novo dentro de vocês. Tirarei de vocês o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne. (Ez 36, 26)

São os reflexos da Casa Grande, mais do que nunca presentes em nossa sociedade, em que o todo poderoso senhor branco, mantém a supremacia da raça branca, numa imposição de um jogo de identidades, em que os demais que não fazem parte desta, são relegados a seres de segunda categoria. Os indígenas que estão morrendo por falta de assistência adequada, são apenas alguns números a mais, afinal, “todos vamos morrer um dia”. E daí? Eu não sou coveiro mesmo! Como ficar calado diante de tanta barbárie? Que chegue até Deus o grito dos pobres, como no salmo que rezamos hoje: “Chegue à tua presença o gemido do cativo: com teu braço poderoso salva os condenados à morte, e aos nossos vizinhos devolve sete vezes a afronta com que te afrontaram, Senhor!” (Sl 79, 11-12)